20.10.14

À Boleia (19)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Tiago Ribeiro, autor do blogue #  e colaborador no site À Pala de Walsh.
Obrigado, Tiago, pela colaboração.

Caminho Largo: Tendo em conta um sentido mais crítico, habitualmente como visualizas e como aprecias um filme?

Tiago Ribeiro: Acho que tudo vai desembocar na minha adesão emocional ao filme. Essa lenga-lenga do "não gostei, mas admiro" não me serve. Não estou a ver um filme como quem analisa números ou conta sacos de batatas. O outro dizia "emotion pictures" e concordo a 100%. Depois há as expectativas pré-filme e questões muito importantes que não me parecem devidamente salientadas, como as condições físicas e mentais em que se vê um filme. Pela minha experiência, os filmes do Antonioni e do Hou-Hsiao Hsien devem ser vistos em estado semi-ensonado, só assim se podendo saborear na plenitude as ramificações langorosas da coisa. Depois há os filmes dos últimos quinze anos do Von Trier, que devem ser experienciados em sono profundo. Mas estou divagando. Até hoje ainda não sei o que me atrai especificamente num filme, pois certas características (o silêncio ou o ruído, travellings ou planos fixos, moralidade ou amoralidade, etc) podem estar no meu agrado por um filme e no meu completo ódio por outro. Ódio mesmo; se num filme há, a partir de um determinado momento (ás vezes logo num genérico) um click de profunda irritação, eu passo o resto do filme já a leste do mesmo, começando então a engendrar mirabolantes planos para me encontrar com o realizador e andar à pancada com ele.

CL: O cinema está mais no modo de contar que propriamente naquilo que se conta. Identificas-te com esta posição? Porquê?

TR: Parece-me que sim. É da própria condição humana. São como as respostas a estas perguntas. Todas as pessoas dariam respostas diferentes. Depois há o Von Trier, que não só lhes responderia de forma diferente, como o faria enquanto espetava pregos nos olhos de uma barbie. Cada filme tem a marca de quem o fez, por mais tarefeira e anódina que possa ser a pessoa em questão. Não somos robots, pelo menos ainda não. Se entregassem o Nuit et Brouillard ao Spielberg de certeza que hoje seria uma obra repleta de nódoas negras. E se estivesse a cargo do Von Trier, o melhor que teríamos a fazer era fazermos todos um buraco no solo e por lá ficar, rezando e chorando.

CL: Para além do argumento e da realização, existe em toda a produção de um filme algum departamento que possa se destacar por si só de forma a catapultar o resultado final para outros níveis? A banda-sonora enquadra-se neste pensamento?

TR: Tudo está na realização. Argumento, direcção de actores, figurinos, banda-som, etc, tudo já lá está. Todos esses "departamentos" devem ser escravos da mise-en-scéne. Por isso é que nunca percebi aquela coisa dos Oscars, onde o tipo ou tipa que ganha o boneco de melhor realizador por vezes não ganha o do melhor filme. Disseram-me que isso tem a ver com lobbies, mas deve ser mentira, porque as pessoas são boas e justas por natureza. Mas já que falas na banda-sonora, não diminuindo a sua extraordinária importância (há filmes que são completamente arruinados por um uso excessivo e/ou redundamente sublinhador), prefiro destacar o trabalho sonoro num filme. Gosto mais de sons do que de imagens. Penso de que são os sons e não tanto as imagens que me fazem mergulhar de corpo inteiro num filme. Se um dia destes aparecessem por cá uns aliens a dizer-nos que poderíamos sobreviver, mas só se retirássemos as imagens aos filmes, eu ficaria contente. E mais contente ficaria se levassem o Von Trier com eles, na volta.

CL: Em que medida a subjectividade da arte, e do cinema associado, atinge referências quase absolutas, leia-se obras-primas incontestáveis?

TR: Não existem obras-primas incontestáveis. Pelo menos eu quero pensar que não. Essas "obras-primas incontestáveis" só existem numa vertente mental, seja individual ou mais ou menos colectiva. Por isso foco-me na primeira parte da tua pergunta, na "subjectividade". Voltamos, então, aos números e ao saco de batatas. Se um tipo como o Bosley Crowther desancou no It's a Wonderful Life e no Muriel aquando das suas estreias, e hoje são "duas obras-primas incontestáveis", em que ficamos? São só contextos de percepção, de recepção: culturais, sociais, até económicos. Antes de 1955 havia uma série de "obras-primas" e outra série de "lixeiras", e o maralhal dos Cahiers rebentou com todas essas premissas. Depois há um lado seguidista, e que funciona assim: alguém com relativa influência crítica desenterra lixo e afirma que é magnífico, obra-prima, e outro diz que "sim, senhor, nunca tinha pensado nisso", e mais outro, e por aí adiante, até à completa canonização. Se eu tivesse alguma influência, afirmaria que o Ace Ventura é extraordinário, e daqui a cinquenta anos lá estaria o Ace Ventura no top 20 dos "melhores filmes de sempre" da Sight and Sound.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador João César Monteiro: "O cinema não é mais do que um itinerário que instaura o reencontro do homem consigo mesmo."

TR: Uma forma poética (de um dos maiores poetas da história) de colocar em primeiro plano a identificação Homem/Cinema. Por mais que haja correntes de pensamento a quererem desvirtuar a relação de identificação do espectador com o filme, essa será sempre a "questão essencial", como diria o Dr. Pacheco Pereira: vamos ver um filme para ter aconchego espiritual. Para saber que do outro lado há alguém que nos compreende e sabe os nossos anseios, desejos, rancores, etc. Ou então não é nada disto, e está muito certo também.

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