31.1.14

Cenas (9)

Revolutionary Road (2008), Sam Mendes


Tremendo exemplo da força da representação, do vigor das personagens e do poder dos actores ou, noutra perspectiva, do esforço e da firmeza do realizador na direcção destes mesmos, num exercício cinematográfico mais teatral e contemplativo que propriamente inventivo. Se quisermos, mais altruísta e paciente que rigorosamente introspectivo e exaltado, deixando, por isso, respirar o diálogo e o seu rumo em direcções e sentidos altamente imprevisíveis e angustiantes.

Particularmente, os últimos planos a empregarem-se e a dedicarem-se à personagem de Kate Winslet, sempre em primeiro plano, são deliciosos, vorazes até, de tão intensos e minuciosos que se enquadram, tal como a profundidade, através do contraste e da (não) definição, adquire contornos cénicos e de contexto deveras vibrantes e culminantes de toda uma situação sensível ou, enfim, de toda uma discussão inflamável. Grande Leonardo DiCaprio, grande Kate Winslet, grande Michael Shannon e grande Sam Mendes, no mínimo, por toda a energia que propagam nesta espantosa cena.

27.1.14

À Boleia (16)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Hugo Gomes, autor do blogue Cinematograficamente Falando....
Obrigado, Hugo, pela colaboração.

Caminho Largo: Habitualmente como avalias, estruturas e classificas todo e qualquer filme? Há sempre algum ponto de partida ou oscila de caso para caso?

Hugo Gomes: A avaliação e consideração dos filmes nas minhas críticas e textos deriva de vários factores, como também das minhas necessidades cinematográficas. Com isto saliento que não avalio os filmes por iguais, existe sempre uma apreciação para os diferentes géneros, estilos, intenções e nacionalidades. Como por exemplo, uma comédia tem que funcionar não por via dos seus gags mas pelos seus personagens e argumento, o terror tem que saber arrepiar ou em todos os casos criar novas fronteiras, nos blockbusters aprecio a modéstia, se existir, e nos seus objectivos como entretenimento e no cinema de autor, esse, o qual tenho mais cuidado na apreciação, tem que saber a acima de tudo comunicar com o espectador. Porém e como tenho reparado ao longo da minha "viagem" pelo cinema, sou um aficionado não pelo argumento em si, mas pela forma como é exposta, a narrativa. Talvez seja por isso que estou constantemente a abordar a narrativa dos filmes por "tu", a sua planificação e os seus diversos ritmos. Quantos às notas, admito que tento ser o mais cuidadoso possível, o qual são dadas diante daquilo que exprimi em texto. Esforço em ser imparcial, mas acima de tudo detentor de uma opinião independente e persistente.

CL: Na sua essência e no seu conceito, o que é para ti o cinema? Mais arte ou mais entretenimento?

HG: Esse é sim, a questão das questões para qualquer cinéfilo e consoante a resposta, aquilo que o define. Eu penso que o cinema, acima de tudo é uma interacção com o público, uma forma corrente de espalhar a sua mensagem, as suas intenções e visões. É uma arte polivalente, versátil e multifacetada que tão bem funciona como "peça de museu", como também "circo". E é nessas temáticas que se concentra a verdadeira essência do cinema, ele é como barro moldado por diversas mãos, o qual são sujeitas a diferentes “impressões digitais” que permanecem salvaguardados para a posteridade. Entretenimento ou arte, o cinema não se fica por uma única posição, e é isso que o distingue.

CL: Como diferencias genérica, temática e conceptualmente Hollywood do resto do mundo, em especial do Cinema Europeu? Os seus objectivos e as suas motivações, à partida e à chegada, conferem-lhes maior ou menor qualidade?

HG: O grande problema de Hollywood é o facto de se assumir como uma indústria de entretenimento, uma “fábrica” capitalista que se esconde por entre o glamour e o brilhantismo. E tal como uma “fábrica”, onde o negócio soa como o elemento predominante da produção, o profissionalismo é a preocupação e para isso há que conformar com a fórmula. Infelizmente nos dias de hoje, o cinema de Hollywood é composto por fórmulas, modelos académicos, lugares-comuns ou simplesmente os mesmos esquemas narrativos, tudo isto satisfaz o espectador, aliás se encaramos a realidade em linguagem de restaurantes, podemos comparar a grande parte do cinema vindo dos cantos do "Tio Sam" como autênticos pratos de fast-food, são populares, fáceis de digerir e deixam no mínimo as audiências satisfeitas, mesmo que a fome "cinematográfica" não esteja por completo saciada. Ódio gradual dos grupos elitistas e puristas, confesso que cada vez mais sinto desprezo pelo cinismo de Hollywood, temos que acima de tudo admitir que muita da linguagem cinematográfica e da tecnologia e práticas capaz de elaborar novos campos narrativos e fílmicos advém desse cinema norte-americano de requinte. Ou seja, por um lado temos muito que agradecer e a dever a Hollywood. Quanto à Europa! Ao contrário daquilo que muitos pensam, o cinema é originariamente europeu, os irmãos Lumiére foram os responsáveis pela invenção do cinematógrafo, mecanismo pelo qual foi possível projectar as primeiras imagens em movimento e com isso a expansão da Sétima Arte propriamente dita. Durante muito tempo, a Europa (mais particularmente a França) eram as Hollywoods da altura do cinema mudo, as constantes inovações e as fronteiras da tecnologia em si. Em consequência da 1ª Guerra Mundial, o cinema europeu ficou badalado e devastado pelo panorama social que se vivia, o desfecho do conflito ditou a soberania do cinema. Enquanto a Europa tentava "renascer" dos escombros e da "humilhação", os EUA tinha agora o poder sobre a capital do Velho Mundo, o retardamento de um levou ao avanço de outro. Mas felizmente e tendo em conta aquilo que vivemos e experienciamos, o cinema europeu conseguiu dar a volta e duas uma, ou aspira nas fórmulas hollywoodescas ou transcende de um estilo próprio. Ao contrário da chamada "fabrica dos sonhos", o cinema do Velho Mundo é maioritariamente mais amargurado, cinzento, realista e existencial. Apenas temo que esse padrão se instale por completo na sua essência.

CL: Nesse sentido, onde enquadras o Cinema Português? Por onde se deverá enveredar para o mesmo se autonomizar e se divulgar mais?

HG: O problema do cinema português é que é um cinema imaturo que teve à força de acompanhar o desenvolvimento dos grandes. A nossa aposta cinematográfica foi tardia, aliás limitada pela nossa ditadura que impediu um desenvolvimento gradual do nosso património cinematográfico. Tal se notou também na mentalidade dos nossos espectadores, que se agravou (e ainda agrava) com a fraca cultura cinéfila, ou a ausência de uma educação nesse ramo. É triste ver um país que cada vez mais abandona as nossas raízes culturais, apesar do cinema nunca ter tido lugar no programa educacional das escolas. Devido a isso temos um leque de uma audiência cinematográfica impaciente, inconformada e pouco dedicada aquilo que se chama "cultura", o que se complementa com os nossos "artesãos" que confundem o amadorismo com o experimental. Obviamente que temos profissionais no sector, mas infelizmente são mais os incompetentes que normalmente os competentes, mas isso é outra história! Para o cinema português, o cenário futuro é uma incerteza. Actualmente são produzidas excelentes obras que alcançam "lugares" onde o cinema português nunca esteve, contudo carecem de público. A culpa para tal advém de inúmeros factores, a falada fraca educação cinematográfica até à própria mediocridade de muita comunicação social que prefere promover o blockbuster norte-americano com mais dedicação que o nosso património, depois existe uma débil preocupação em divulgar tais obras por parte das produtoras. É triste mas ainda continuamos a preferir o circo.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Alfonso Cuarón: "A única razão para se fazer um filme não é fazer ou propor-se a fazer um bom ou um mau filme, é apenas ver o que se pode aprender para o próximo."

HG: Aliás como tudo na vida, deve-se aprender com os erros, as glórias, com os nossos passos em geral e nunca, como popularmente citando "descansar à sombra da bananeira". Akira Kurosawa dizia que o artista só chegará à perfeição na sua arte no seu octogésimo ano de vida, no trajecto até essa crucial etapa eram somente ensaios e tentativas. Engraçado é que na altura que o autor proferiu tais palavras já possuía obras como Rashomon ou Seven Samurai na sua filmografia, o que para muita gente são patamares altíssimos da Sétima Arte. Quem concretiza ou se envolve com filmes deve ter a noção de que tudo o que se faz, o que produz, o que se presta é só meio caminho andado para um objectivo maior, a derradeira obra. Porém é verdade que a chamada "derradeira obra" é um fruto de romantização do artista face à sua jornada artística, trata-se do motivo pelo qual se lançam a uma batalha que nunca será terminada - a da perfeição. Diante de tais palavras, Alfonso Cuarón acredita piamente que o dito artista mantêm uma eterna posição de aprendiz, não em relação a eventuais mentores ou dogmas, mas à sua própria excursão. E os verdadeiros homens da Arte admitem tal maldição. A busca pela matriz única e capaz, tal como Almada de Negreiros proclamou quando segundo este, descobriu a fórmula uniforme da forma. Aliás até os mestres estão sempre a aprender.

24.1.14

O Caminho Largo na LuxWoman



É com prazer que anunciamos a presença do Caminho Largo na recente edição de Fevereiro da revista LuxWoman, juntamente com outros companheiros destas andanças. Num âmbito de expectativas ou apostas aos Óscares e ao que de melhor o ano transacto nos trouxe, acedeu-se ao convite e às perguntas e consequentes respostas que assim partilhamos, em meu nome, e em virtude da presente distinção nos TCN Blog Awards. Acima de tudo, um legítimo destaque à blogosfera cinéfila nacional, que gritantemente já merece este tipo de visibilidade.

Das ausências e surpresas às confirmações nos prémios que se avizinham, passando ainda por questões inerentes ao blogue e à respectiva comunidade, assim se respondeu a esta espécie de questionário, que pode ser lido na íntegra com a compra da revista, já nas bancas. De resto, obrigado pelo convite, pela colaboração e pela divulgação.

19.1.14

CCOP: Top de Dezembro de 2013



O último top mensal de 2013 reservou quatro títulos a merecerem entrada directa no top 10 do ano. Short Term 12 (Temporário 12) não deixou ninguém indiferente e conseguiu uma nota média de 8,75 em 10, ligeiramente abaixo do filme mais votado de 2012 (Tabu, com 8,89). O filme é o líder de Dezembro de 2013 e o segundo melhor classificado do ano, abaixo de Before Midnight (Antes da Meia-Noite) (8,82). A surpresa - ainda que notoriamente merecida - ocupa a segunda posição do mês (e quinta do ano) com o brasileiro Kleber Mendonça Filho e o seu O Som ao Redor a receberem a nota média de 8,50 - apesar do filme ter tido uma distribuição limitada em Portugal. Já os irmãos Coen finalizam o pódio de Dezembro, com Inside Llewyn Davis (A Propósito de Llewyn Davis) a receber a nota média de 8,45 (é agora o sexto filme melhor classificado do ano). Nota ainda para The Hobbit: The Desolation of Smaug (O Hobbit: A Desolação de Smaug) que conseguiu quatro décimas acima que o primeiro filme, o ano passado. Destaque para as reposições nacionais (e por isso inelegíveis para o top mensal) de Hiroshima, mon amour (Hiroshima, Meu Amor) e Casablanca. O filme de Alain Resnais recebeu a nota média de 9 e o de Michael Curtiz atingiu os 8,54.

Para consultar os tops anteriores ou o top anual actualizado basta ir ao site oficial do Círculo de Críticos Online Portugueses aquiEis então o top completo dos filmes, com suficiente amostragem, estreados em Portugal em Dezembro de 2013:

1. Short Term 12 (2013)
Temporário 12, Destin Cretton | 8,75
2. O Som ao Redor (2012)
Kleber Mendonça Filho | 8,50
3. Inside Llewyn Davis (2013)
A Propósito de Llewyn Davis, Ethan Coen e Joel Coen | 8,45
4. Le Passé (2013)
O Passado, Asghar Farhadi | 8,38
5. The Hobbit: The Desolation of Smaug (2013)
O Hobbit: A Desolação de Smaug, Peter Jackson | 7,00
6. The Grandmaster (Yi dai zong shi) (2013)
O Grande MestreKar Wai Wong | 6,89
7. Mandela: Long Walk to Freedom (2013)
Mandela: Longo Caminho para a Liberdade, Justin Chadwick | 6,11
8. The Secret Life of Walter Mitty (2013)
A Vida Secreta de Walter MittyBen Stiller | 5,86
9. Oldboy (2013)
Oldboy - Velho Amigo, Spike Lee | 5,33

15.1.14

À Boleia (15)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Axel Ferreira, autor do blogue Por Natureza Morta.
Obrigado, Axel, pela colaboração.

Caminho Largo: O modo como abordas um filme depende de algum conceito à priori estabelecido ou a avaliação incide somente naquilo que o filme é ou como o mesmo se define automática e singularmente? A crítica é indissociável do filme?

Axel Ferreira: A pergunta afigura-se interessante, mas a resposta pode-se afigurar demasiado grande para a intenção. Todos os filmes têm um preconceito associado, isto porque muito raramente se vê filmes ao acaso e, quando se faz isso, normalmente existe um arrependimento posterior. Portanto existe sim um preconceito antes do filme, existe sempre, mas para mim este deve acabar no momento em que o próprio filme começa. Mesmo assim, esta espécie de dissociação gnosiológica é muito difícil de atingir, ainda para mais se tivermos algum conhecimento adicional sobre o próprio enredo. Por isso tenho uma aversão a ver trailers, que têm a fantástica capacidade de já estarem a classificar e a digerir o próprio filme por ti. Portanto, sim, cada filme se deve definir por si na sua totalidade e assim o tento fazer, apesar de isso ser quase impossível.
No mesmo esquema de pensamento, a crítica, no particular (dada por mim ou por seja quem for), pode e deve ser dissociada do filme, pelo menos se tivermos intenção de o visionar (se não o fizermos ficamos inevitavelmente apenas com o preconceito). Por isso também tenho uma aversão a chavões que normalmente se ditam segundo o famoso “como já era de esperar…”. Já no aspeto geral da questão, a crítica, desta vez a de cada um, não pode ser dissociada do filme, a opinião após o sujeito se tornar cognoscente é inevitável. Não se me afigura possível uma abstração tal que separe o filme de nós próprios até porque tudo o que percecionamos está associado a uma sensação. Na minha experiência pessoal apercebi-me que não gosto de ler críticas e interpretações de filmes, por duas razões, a primeira será a de normalmente discordar e a segunda será por tentativa de abstração máxima de ideias pré-concebidas (mesmo que seja já após o seu visionamento). Por isso também tento não o fazer quando escrevo, apenas tento explicar a minha perspetiva sobre os conceitos gerais da própria arte, apesar de já ter acontecido, uma ou duas vezes, de não o conseguir evitar.

CL: Para efeitos de qualidade, que mecanismos e linguagens no seu todo tem a mais a realização em detrimento do argumento cinematográfico? De que forma a montagem interfere nesta dualidade?

AF: Explicando de novo em duas partes, afigura-se-me como regra que um argumento cinematográfico mau significa um vazio de conteúdo para o filme, isto se considerarmos que o argumento inclui toda a mise en scène, o que raramente é o caso. E, não sendo o caso, a mestria do realizador pode influenciar todas as perspetivas e tornar algo banal em algo muito pouco óbvio (mas claro que no sentido teórico da ideia, ao fazê-lo, o realizador está a mudar o próprio argumento mesmo que seja apenas por mudança de intenção). Até a edição, ou montagem do filme, para inovar terá de alterar o argumento, pode-o fazer tanto quase na sua totalidade (como no caso de Annie Hall) como apenas para adicionar efeito de confusão e estranheza (retirando a tal banalidade de algo que se assemelha ao comum, como aconteceu com Memento). No sentido contrário também se me afigura óbvio que um bom argumento pode ser destruído pela banalidade do realizador (como é o caso de Steven Spielberg com Minority Report ou A. I. ou muitos outros).
A linguagem é característica de cada um dos realizadores, ela deve ser o mais original possível, e neste sentido a originalidade impõe-se quase como algo absoluto. A perspetiva e a edição, que é indissociável da linguagem do realizador (apesar de os estúdios de cinema insistirem em destruir esta ideia), são as que transmitem a sensação que acompanha a perceção dos acontecimentos. Sendo um filme uma experiência sensorial, a linguagem representa quase tudo. Ressalvando, no entanto, como acima dito, que o argumento mau torna o filme em algo vazio. Percebe-se também que para cada tipo de realização os eventos do filme têm de ser determinados pela intenção. Particularizando, ninguém imagina Blade Runner a acabar com os replicants, na apoteose final, a serem mortos por Decker a tiro de pistola. Esvaziaria o filme de quase todo o seu significado.

CL: Como poderá actualmente o cinema equilibrar e melhorar a sua veiculação e transmissão de valores transversais à cultura e à educação de um povo? Exemplifica.

AF: Não pode.
O cinema não é um meio educativo, ele não pode transmitir nada que não esteja já presente. Ele não adiciona, apenas multiplica. Sendo o cinema uma arte final, no sentido em que é uma mistura de artes visuais, sonoras e escritas que exige um conhecimento prévio de qualquer uma delas. Por muito que queiram, não há filme que torne o ato de leitura irrelevante, ou o ato de ouvir música irrelevante. Sendo uma experiência sensorial curta apenas transmitem uma interpretação (a algo que normalmente já devemos entender a priori). As interpretações são interessantes mas não ensinam a interpretar, muitas vezes fazem o contrário. O utilizador pouco avisado usa o cinema como um meio para esvaziar a mente de toda a reflexão, muito mais isto acontece quando esta mente se encontra já vazia por si. O cinema pode ser até contraproducente neste aspeto, pelo menos nesta a tendência popular contemporânea. Isto porque estamos a falar de cinema e não de documentários.
Não existem filmes que nos façam refletir, na verdade apenas há filmes que nos fazem ter medo de uma ideia que já sabíamos existir, mas não queremos acreditar ser possível.
Como meio de cultura é um meio final, tal como é uma arte final. Estende perspetivas e por vezes horizontes, mas apenas a algo a que já somos recetivos. Existem certos filmes incompatíveis com certas pessoas, porque essas mesmas pessoas não são recetivas a esse tipo de informação.
A interpretação de Haneke sobre violência só pode ser válida para nós se entendermos que a origem da violência (seja a existência de algo inqualificável como o holocausto seja a existência massiva de tortura física e psicológica) é algo que tem de ser questionado e continua a não ser óbvio. Precisamos de ter uma curiosidade e uma introspeção pessoal que só é dada pela informação e a reflexão sobre ela. O cinema não é nem deve ser informação.
Se o cinema transmite valores morais o único que vai fazer é o impedimento da formação de valores éticos.

CL: Tendo em conta a sua origem, o seu crescimento e a sua sobrevivência, a saúde da sétima arte necessita da inclusão do entretenimento? De que forma?

AF: Não. Em termos económicos os filmes de entretenimento não ajudam em absolutamente nada à sobrevivência do cinema como arte, normalmente apenas o prejudicam. Mais do que isso criam uma espécie de resistência nas pessoas ao cinema feito com intenção de arte. Numa Era em que tudo é acessível o cinema de qualidade continua a ser cada vez menos popular. Existe até uma menor tolerância do público à experimentação cinematográfica e à experimentação de sensações novas, que é na verdade a base do cinema.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador David Cronenberg: "Há um ditado em arte que diz que para se ser universal deve-se ser específico. Penso que qualquer artista sente que está a lidar com coisas específicas, mas que elas têm significado universal."

AF: Concordo apesar de não apreciar terrivelmente o realizador. Até nos movimentos das artes que mais se separam da representação da realidade, como o surrealismo e o impressionismo (de maneiras muito diferentes), tudo começa no particular. Mas conseguir o significado universal é algo que necessita de mestria e poucas vezes é alcançado, até nas obras mais aceites nem sempre acontece.
Este conceito é moderno e levou até a uma obsessão com o significado. Sente-se até uma preocupação desmedida em tornar os eventos explicativos em si mesmos, como se se retirá-se o acaso da equação. Por isso acho tão apelativo o cinema japonês e coreano, onde a obsessão com o significado é muito menos patente.

12.1.14

Captain Phillips (2013)

Capitão Phillips, Paul Greengrass


De acompanhamento frenético e angústia predominante e palpitante, Capitão Phillips assume-se como uma agradável investida (audio)visual e como uma recordação recente colectiva pelos meandros lineares da perseguição, da clausura e da extorsão irrealísticamente entrelaçadas. Um tremendo drama (real e biográfico), ao jeito de um thriller crescente e desesperante, em (in)tencionada suspensão e em constante balanço entre a desgraça e o sucesso de uma missão antecipadamente de alto risco, onde nitidamente ninguém sairá ileso ou desprovido de cicatrizes após tamanha experiência comportamental ou condição existencial.

Um aparente filme de aventuras, à superfície das ondulações emocionais, que às tantas se vira, qual barco em alto mar, num autêntico braço de ferro entre dois homens, de igual para igual e sem heróis ou vilões definidos, encabeçados por Barkhad Abdi e Tom Hanks, que, a propósito, absorvem espantosas interpretações e, ainda assim, suficiente densidade psicológica (exigia-se mais) dentro e fora do seu ambiente ou habitat familiar e cultural. O primeiro, constitui admiravelmente uma descoberta ou conquista nestas andanças, mas é em especial o segundo que surpreende e que recorda o seu potencial, personificando o capitão sempre à frente ou, mais tarde, sempre atrás nas periclitantes situações do enredo. De facto, inesperado nível evidenciado por Hanks, num registo por demais natural e humano, isento de artifícios e condizente à sua melhor performance dos últimos anos (os derradeiros minutos com o personagem, de rastos e em lágrimas, correspondem mesmo a uma das grandes cenas, senão a melhor, em todo o filme).

Com uma banda sonora e uma montagem em relevo (sobretudo na edição e na mistura de som), o filme de Paul Greengrass, embora algo indeciso em grande parte no rumo a tomar e, acima de tudo, hesitante sobre como e o que filmar no segundo acto cénico, entre os actores e a acção, também se revela apesar de tudo acima da média no que à realização pontual diz respeito, nomeadamente com uma proximidade e uma subtileza em alguns momentos aflitivas, de tão trépidos ou frios que estes se apresentam. Completamente embriagantes até, e exibidos sem qualquer receio ou pudor. Tendo, por outro lado e igualmente como seria de esperar, a tensão e o suspense já habituais no realizador de The Bourne Supremacy e de United 93, tal como a recorrente câmera ao ombro ajustada quanto baste à imprevisibilidade e insegurança dos acontecimentos, aqui verdadeiros protagonistas de uma história pulsante sob um relato claustrofóbico e desnorteado vivido intensamente do primeiro ao último minuto.


Jorge Teixeira
classificação: 7/10

6.1.14

À Pergunta da Resposta (8)

Pergunta:
Um filme que revele a tolerância e a paciência que devemos ter com os outros na boa e irrepetível conduta diária?

Resposta:
(na resposta à questão está uma palavra a reter)

(na resposta à questão está uma palavra a reter)

(na resposta à questão está um nome a reter)

Pergunta:
Um filme que revele a tolerância e a paciência que devemos ter com os outros na boa e irrepetível conduta diária?

Resposta:
A resposta está nas pistas ou no que elas sugerem.
Adivinha qual o filme?
(soluções posteriormente nos comentários)

(os textos e as publicações envolvidas nas pistas são de consulta e leitura obrigatória)

4.1.14

Inside Llewyn Davis (2013)

A Propósito de Llewyn Davis, Ethan Coen e Joel Coen


Entre a intermitente comédia e a convergente tragédia, eis um notável retrato de uma classe artística num apropriado e urgente período da sua história. O músico, o cantor folk nos anos 60, e as suas contrariedades profissionais e embaraços pessoais em sobreviver, em subsistir e resistir às partidas do acaso, do tempo e do espaço em si, e da consequência em seguir sonhos e ambições, por mais (in)coerentes e (in)justos que eles sejam. No fundo, a luta contra si mesmo, contra as suas virtudes e os seus defeitos, e, conjuntamente, contra o poder implacável do dinheiro na sua vida, na condição de artista, e da sua capacidade em reverter ou não situações menos favoráveis, porventura irónicas de tão graves e improváveis que se tornam (facto que o filme eficazmente se apropria).

Num ritmo assaz distinto e temperado, a deambulação do protagonista pelas ruas de Nova Iorque, a meio por Chicago, e pelas ruas da sua consciência (na sua maioria pesada), se dá consoante os personagens assim o desejem ou a câmera assim o ambicione, num esforço, contudo, assimetricamente resolvido (com destaque para os inebriantes e sublinhados momentos cantados a solo), que no conjunto ainda assim não alcançam os seus intervenientes, autênticos faróis no oceano exploratório da narrativa. Brilhantes e intensas interpretações, todas, sem excepção, mas particularmente a de Oscar Isaac, que se empenha de alto a baixo, do interior ao exterior, com uma energia e contenção constantes e inabaláveis.

Ethan e Joel Coen, mais uma vez, a demonstrarem o seu exemplar e especial domínio no tom, na harmonia e na perspicaz montagem de todo um projecto que, na teoria se assume como ímpar nas suas carreiras e, na prática como mais um testemunho afectuoso e fraterno, ou como mais uns (de)graus adicionados à abertura da compaixão, para dentro (inside) do sensível. Facto, aliás, que acresce à clara e manifesta tendência por parte dos irmãos de ir permitindo receber, pouco a pouco, nos seus já habituais registos mais frios e descarados, algum sentimentalismo, algum assentamento e reflexão, provavelmente proveniente da idade e da sabedoria assimiladas. Mas é, sobretudo, na fabricação de um argumento deveras pertinente, competente e eloquente, onde o fim se confunde com o início num relevante ensaio social, que os realizadores mais peculiares do cinema moderno americano aqui se demarcam, quiçá se excedem.

Magnífico trabalho também na fotografia, a polir toda uma experiência muito reluzente e aconchegante e, porque não, quente numa época fria. Uma solitária viagem, que nos créditos, ao som da excelente banda sonora (de resto, polvilhada em todo o filme em sedutores trechos, ou direi, intervalos?!), nos deixa um doce sabor pelos minutos que passaram ligeiramente, na sua marcha muito própria, e um travo amargo pelo abandono de tão possantes e vigorosas performances e, em particular, de tão agradável visão e percurso individual, no que estabelece ou forma uma mais que certa companhia ao qual tão cedo não iremos esquecer ou deixar de recorrer.

"If it was never new, and it never gets old, then it’s a folk song."


Jorge Teixeira
classificação: 8/10

2.1.14

À Boleia (14)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Carlos Branco, autor do blogue Planos Perpétuos.
Obrigado, Carlos, pela colaboração.

Caminho Largo: De forma geral, que valores principais e detalhes fulcrais destacas numa apreciação e eventual avaliação de um filme?

Carlos Branco: Aquilo que na minha opinião e de uma forma geral mais valoriza um filme será porventura a forma como o realizador passa a mensagem através de uma linguagem que se distinga pelo individualismo estético da sua visão da realidade que quer retractar ou construir e que esse exercício de individualismo intelectual seja capaz de apelar aos mais puros sentidos do espectador, de um colectivo, formando assim a obra de arte. Existem com certeza aspectos materiais que fazem dar corpo a essa individualização de um realizador através do filme, mas nessa tal apreciação do objecto cinematográfico reservo muito da objectividade à sua subjectividade, ou seja, àquilo que não se consegue explicar e que foge às normais mais racionais ou convencionais da análise. É muito difícil chegar a uma conclusão objectiva sobre aquilo que nos toca mais no cinema e penso que a magia da sétima arte é toda essa, mas na minha opinião muito daquilo que faz o meu gosto é a forma como se mostram as coisas e como se constrói ou desconstrói a realidade e a ficção.

CL: As linguagens da forma são mais verdadeiras e intrínsecas ao cinema que as do conteúdo. Concordas com esta afirmação? Em que sentido e onde é que identificas a forma e o conteúdo num filme? Estarão ligados ao argumento e à realização única e exclusivamente?

CB: Aparentemente parece haver um conflito entre forma e conteúdo – a própria afirmação desta pergunta remete para isso mesmo - ou seja, há uma tendência para tomarmos estes termos como incompatíveis. Mas eu prefiro seguir um caminho de convergência e talvez juntando a isso alguma confusão, opto por despir os termos de qualquer tipo de concepção ou pré-conceito. Numa visão muito simplista ou até paradoxal acerca deste tema, eu posso afirmar-me como um formalista onde as impressões estéticas e artísticas (que em cinema assumem-se sob várias formas e meios) correspondem àquilo que entendo como a qualidade do filme dando-lhe a “eternidade”, mas a verdade é que o valor acrescentado a esta perspectiva mais adepta da formalidade terá de transportar consigo uma narrativa que contenha os fundamentos mais básicos da mensagem que se pretende transmitir. Talvez seja esta uma ideia muito utópica, mas na minha opinião por muito que se privilegie os aspectos formais de uma peça, se esta não tem um fundo de consciência narrativa e trabalho de representação, não há forma que lhe resista nesta óptica total da análise conceptual que se possa fazer. Ainda assim, existindo apenas a forma feito invólucro sem nada lá dentro que se possa significar, dependendo da abordagem do realizador, essa é uma ideia de que posso comungar positivamente. Com isto digo também que não há linguagens mais verdadeiras do que outras, todas elas se encontram e todas elas servem o objecto do cinema com o objectivo de ligar o filme ao seu tempo, mesmo que o tempo do filme seja alheado da realidade ou aliado puramente à ficção que o realizador tem em mente.

CL: Comparativamente, que importância ou relevância atribuis a toda a concepção, preparação e acto de filmar engenhosamente planos, com ou sem movimento, em detrimento da tarefa pós ou pré-definida de os montar com competência e imaginação? Em que sentido a filmagem tende para a montagem e vice-versa?

CB: Relativamente a esta questão quero acreditar que a qualidade do produto final é em todos os casos resultado do virtuosismo do realizador através da sua capacidade de dar corpo àquilo que tem como por objectivo para o seu filme. Sem grandes cenas, sem grandes planos e sem essa capacidade em reunir o melhor dos actores e da história que se conta a uma imagem forte que represente precisamente essa ligação, não há milagres que se possam fazer na fase da montagem. Com certeza a fase da montagem de um filme é uma parte importantíssima, e que em alguns casos é até mesmo a partir desta fase que se consegue imprimir ainda mais e melhor aquilo que se pretende mostrar. Mas no fundo acredito que, suportado pelo virtuosismo dos criadores das imagens, a montagem é como o processo natural da construção desse filme contribuindo como mais-valia para o resultado final, mas que per si não consegue transformar trabalhos sem qualidade em obras aceitáveis do ponto de vista mais intelectual ou mesmo tradutores da tal estética formalista aliada ao realismo do assunto que caracteriza os melhores e que eu tanto prezo.

CL: Tendo em conta a problemática relativa à identidade e definição artísticas, o cinema está, ou deveria estar, mais relacionado com cineastas e os seus filmes e carreiras acumulados ou mais associado a obras ou produtos cinematográficos que, gerados e geridos maioritariamente pelos seus valores de produção e divulgação, não dependem tanto do seu realizador? Teórica e idealmente que peso e medida deverá ter o realizador e a eventual indústria ou produção agregada na autoria do objecto cinematográfico?

CB: Na minha opinião o exercício artístico só existe em liberdade e é em liberdade que deve ser reconhecido. Apesar das condicionantes do mundo e do mercado e das várias limitações que os cineastas enfrentam, fazer um filme é e será sempre um exercício de liberdade e é nesse contexto que se deve definir a qualidade do produto. Dito isto, temos de viver bem com o facto de haver cinema para todos os gostos e para todos os públicos. O realizador que opte por fazer um blockbuster, sabe que vai ter ao seu dispor uma quantidade de meios e posteriores campanhas de marketing que irão ajudar a ter o retorno do investimento e reconhecimento comercial pelo seu trabalho, permitindo continuar a fazer um cinema mais direccionado para as massas ou então quiçá um cinema mais de acordo com os seus verdadeiros padrões livres da pressão ou opressão dos resultados comerciais. Se virmos bem, mesmo os mais independentes dos realizadores têm os seus modelos de negócio e usam os meios de marketing que têm à disposição para fazer chegar o seu produto ao maior número de pessoas. São opções que correspondem a formas de estar na vida e no cinema, são escolhas feitas livremente ou até obedecendo unicamente a padrões economicistas e de lobby, pouco importa. Cabe ao espectador escolher também livremente, embora tenhamos de reconhecer que a difusão global de opinião através da internet e redes sociais contribui para moldar e influenciar os gostos, para o bem e para o mal.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Samuel Fuller: "Cinema é um campo de batalha. Amor, ódio, violência, acção, morte... Numa palavra, emoção."

CB: Com esta definição podíamos voltar à primeira pergunta, é a emoção. Mas a emoção ou aquilo que nos emociona em cinema tem contornos difíceis de definir, depende muito do estilo, da perspectiva, da disponibilidade, mas sem dúvida, a palavra emoção está lá como uma certeza constante. Aquilo que nos emociona é aquilo que nos faz sentir vivos e o cinema faz-nos sentir vivos. Mesmo que odiemos o filme, sabemos que há um outro que vamos amar; mesmo que nos revoltemos com um diálogo, sabemos que há um silêncio que vamos querer ouvir; mesmo quando uma sequência não é a mais coerente, há sempre um outro plano que melhor enquadra aquilo que queremos ver naquele momento; enfim há no cinema essa função inata de dar um fundamento aos nossos sentimentos mantendo-os críticos e é isso que faz única esta arte.