29.9.13

Cenas (7)

The Great Dictator (1940), Charles Chaplin


Num dos discursos mais fortes e mais comoventes de toda a história do cinema, Charles Chaplin despe-se de máscaras e de fabulação para tocar(-nos) num assunto necessário e urgente, senão mesmo intrínseco ao ser-humano. Decorrente da acção e num momento de pressão pública para se manifestar, o ditador (personagem principal) constrói uma mensagem a todos os níveis fracturante, essencialmente para a época nazista de então, mas curiosamente também para os dias de hoje, para a actualidade (ainda que aparentemente por outros motivos). Visionária, oportuna ou intemporal, uma coisa é certa, esta cena (aqui ligeiramente adulterada no que ao som diz respeito) fica para a memória de quem a vê, daí nada melhor que revisitá-la doseada e regularmente.

26.9.13

À Boleia (9)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Luís Mendonça, autor do blogue CINEdrio e do site À pala de Walsh.
Obrigado, Luís, pela colaboração.

Caminho Largo: Genericamente e em abstracto o que é para ti a verdadeira essência de um filme?

Luís Mendonça: Não tendo uma resposta definitiva a essa questão - e talvez que nunca terei, até porque se calhar a verdadeira essência é não haver uma verdadeira essência -, penso que os primeiros mais perspicazes espectadores dos filmes dos Lumière souberam perceber que o extraordinário daqueles pequenos recortes de vida não estava na acção que se desenrolava em primeiro plano, mas ao fundo, em profundidade, no movimento das folhas da árvore ao vento. A essência do cinema seria, parafraseando Godard, tornar o invisível visível. E, pegando em Kracauer, diria que esse invisível "redimido" no ecrã poderia ser o tal vento que faz mexer as folhas da árvore como aquilo que não reparamos por nos ser demasiado próximo  - por exemplo, as pequenas coisas e gestos, privados ou públicos, que compõem o dia-a-dia de toda a gente... A essência do cinema reside, então, na capacidade, que comprovadamente tem, de nos dar a (re)ver o mundo que conhecemos numa distância permanentemente renovada, justa e "redimida".

CL: Há quem considere que a montagem é a única característica própria e única do cinema, e portanto, o factor determinante para a qualidade da obra final. Concordas? Em que sentido analisas a montagem num filme?

LM: Há, na tradição europeia pelo menos, uma inclinação para preferirmos a mise en scène ou o plano à montagem. Contudo, se pensarmos num cineasta como James Benning, à partida aquele que mais privilegia a duração do plano, estamos perante uma espécie de purificação da ideia de montagem, na medida em que a renúncia ao corte é, em si mesma, uma decisão de montagem. Ao mesmo tempo, podemos distinguir uma montagem horizontal (entre planos) de uma montagem vertical (entre os planos da acção, dentro do quadro). Portanto, a montagem é uma ferramenta estrutural no cinema, mas de modo algum está sujeita às ideias de elipse e de velocidade. Esta é a ideia falsa que tem sido potenciada pelas montagens hipertróficas da televisão, da publicidade, dos videoclipes e, hoje, da maior parte do cinema mainstream de Hollywood.

CL: É importante o aspecto autoral de um realizador? Mesmo que isso conduza à repetição de fórmulas e mecanismos (e filmes) que aparentemente, passe a qualidade, pouco trazem de novo à sua carreira e ao cinema?

LM: Se calhar também a repetição deveria ser parte dessa ideia de "o que é o cinema?" ou não teriam os próprios irmãos Lumière facilmente percebido, pouco tempo depois de inventarem o cinematógrafo, que o cinema era uma invenção sem futuro. Eles perceberam facilmente isso, mas estavam tão certos quanto errados. Certos, porque acharam que o cinema se tinha esgotado nos seus quadros - e, hoje, parece que de facto TUDO começa e acaba na estação de La Ciotat. Errados, porque o futuro da invenção cinema estava garantido pela sua capacidade infinita de se reinventar. A repetição é inevitável, mas saber repetir e fazer nascer dessa repetição uma identidade própria (uma variação, por muito ténue que seja, da gramática lumièriana-griffithiana), isso já é mais difícil e, quanto a mim, reside aí o principal desafio que se coloca a qualquer realizador com consciência do que está atrás de si - e do que pesa sobre os seus ombros... -, isto é, qualquer "autor".

CL: O cinema na televisão e o cinema em televisão. Pode-se dizer que existe, ou que já existiu, as duas situações? Em que medida?

LM: Tarantino diz que, com o digital, o cinema passou a ser uma forma de televisão em público. A imagem é feliz e terrível, mas talvez as duas linguagens estejam nesta altura preparadas para a "derradeira" fusão. Em tempo de grandes convergências multimediáticas, faz-se cinema como quem fazia televisão e faz-se televisão como quem fazia cinema. E estará errado quem se demitir de problematizar minimamente esta espécie de nova esquizofrenia (d)estrutural. Cineastas como Godard, Bergman e Fassbinder, filmando ora para o pequeno, ora para o grande ecrãs, aperceberam-se, antes de todos os outros possivelmente, destes caminhos que hoje percorremos. Se calhar as lamúrias de Soderbergh sobre o ter de passar o seu último filme na televisão não serão as lamúrias do Soderbergh de amanhã.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador John Ford: "Qualquer pessoa pode realizar um filme, assim que conhecer os fundamentos. Realizar não é um mistério, não é uma arte. O principal sobre realizar é: fotografar os olhos das pessoas."

LM: É uma excelente frase de John Ford que me lembra aquela de Sergio Leone, segunda a qual "o principal" é saber como fotografar o rabo de um cavalo. Ou aquela de Jodorowsky: "não faço filmes com os olhos, mas com os meus testículos". Ou seja, não sei se o principal está nos olhos das pessoas, no rabo dos cavalos ou nos testículos do Jodorowsky. De qualquer maneira, todos estes três realizadores procuram dessacralizar o "fazer cinema" (não há mistério), mas acabam consciente ou inconscientemente por mistificar/mitificar os seus resultados, os seus efeitos..., desde logo através do exemplo que os seus cinemas nos dão. Aliás, é desde já curioso como uma frase que afirma que "realizar não é um mistério" pode ser tão sedutoramente misteriosa. Nesse sentido, ela é quase uma metáfora perfeita de  todo o cinema de Ford.

23.9.13

À Pergunta da Resposta (6)

Pergunta:
Um filme que retrate os limites ou os horizontes daquilo que as pessoas acreditam?

Resposta:
(na resposta à questão está uma palavra a reter)

(na resposta à questão está uma palavra a reter)

(na resposta à questão está um nome a reter)

Pergunta:
Um filme que retrate os limites ou os horizontes daquilo que as pessoas acreditam?

Resposta:
A resposta está nas pistas ou no que elas sugerem.
Adivinha qual o filme?
(soluções posteriormente nos comentários)

(os textos e as publicações envolvidas nas pistas são de consulta e leitura obrigatória)

22.9.13

Passion (2012)

Paixão, Brian De Palma


Antes de mais, não há dúvidas, estamos perante um filme de Brian De Palma (de volta à sua melhor forma), desde o seu núcleo narrativo delirante até ao seu formalismo imaginativo. Depois, é evidente que o cineasta pegou (ou roubou) num material já existente (o filme de Alain Corneau) para satisfazer o seu ego, as suas ideias e as suas ilusões, ainda que ocasionalmente disfuncionais e desligadas entre si, mas que no conjunto constituem aquilo a que chamo inequivocamente de peça ou puzzle autoral.

Com auxílios e veículos de luxo (ou serão aviões?) reproduzidos nas duas belas actrizes Rachel McAdams e Noomi Rapace (para além dos secundários ou meros peões masculinos e para além do terceiro pilar feminino, a ruiva, surgido e induzido lá mais para o final), De Palma constrói um thriller de competição profissional (e actual), de enganos e desenganos, de disfarces e metáforas, de jogos traiçoeiros, astutos e silenciosos, onde a ascensão empresarial e a satisfação pessoal estão na linha da frente, custe o que custar, influenciando as simuladas relações e, sobretudo as motivações e identidades. Uma - McAdams - é loura, perspicaz, ousada, invejosa, fria e sedutora, que não olha a meios para atingir fins, outra - Rapace - é morena, ingénua, dependente, insegura e apaixonada pelo seu ofício e pelo namorado da anterior. São as duas peças principais e que, à primeira vista, constituem pessoas diferentes, aparente e profissionalmente compatíveis e eficazes nos seus objectivos. São ambas, na verdade, também inteligentes, cada uma à sua maneira, o que possibilita e nos transporta, com o desenrolar dos acontecimentos e as mudanças de espírito, para a "segunda vista".

Nesta segunda parte, ou mais profunda camada, em virtude da fragilidade das mentiras e dos segredos, os episódios (e os acasos) misturam-se e as personalidades baralham-se (invertendo-se mesmo em algumas características na personagem de Noomi Rapace), o que proporciona a mais que legítima capacidade de De Palma em nos brindar com as suas construções e descontruções na dialéctica argumento e realização, ou imagem e percepção. De facto, o realizador considerado por muitos como discípulo directo de Hitchcock (e como isso é bem visível aqui) consegue a proeza de nos dar imagens, em nada directas, para articular, para pensar, para decifrar e para nos deliciar.

Inicia com uma narrativa ou exploração cautelosa, protegida, provocatória, premonitória e de forte cariz sexual, para ceder o lugar (privilegiado e em primeira fila) a uma trama crescentemente envolvente e enigmática, e psicologicamente perturbante, tanto quanto a liberdade e a desarrumação rotineira assim o permitem e, dado a criatividade do artesão por detrás das câmaras, pois claro, que projecta e exige do espectador tudo e mais alguma coisa, aqui verdadeiro objecto e objectivo focal. Planos oblíquos, contra-campos inventivos, ecrã dividido e subentendido, luz e sombra desfiguradas, movimentos indefinidos, segmentos ocultos, dispositivos propostos e dispostos em estratos (sonhos), e códigos apropriados e invertidos (a tecnologia) são apenas alguns exemplos da mestria da realização e da montagem, perfeitamente egoístas, mas entrosadas, e numa ou noutra cena, com a assistência da (enorme) banda sonora, eficazmente fundidas (todo o acto final à la Hitchcock, por exemplo).

Em suma, quando poderíamos estar a pensar numa longa-metragem desenvolvida unicamente à semelhança da quase primeira hora, dentro dos contornos do erotismo, da hipocrisia e da superficialidade ténues e suportáveis do dia-a-dia laboral (no que constitui apesar de tudo uma boa fluidez excitantemente temperada), somos completamente enganados, como que tiram-nos o tapete dos pés, sem licença, e só não caímos porque, no fundo, até que esperávamos (ou ansiávamos) o rumo que a história acaba por tomar, ou melhor, a direcção (desnorteada) que o jogo mental e espacial palmaniano parece desembocar. Isto sob uma tensão persistente e musicalmente acutilante, e não deixando de realçar aqui, com o devido mérito, a grande presença e prestação de Rachel McAdams, conotativa e sintomaticamente atractiva, que acrescenta e que traduz essa imprevisibilidade e ambiguidade do argumento e que, convenhamos, está garantidamente acima da sua parceira no que ao protagonismo do filme diz respeito. O que até é contraditório e decepcionante, uma vez que a personagem de Noomi Rapace tem mais composição ou mais crescimento e propagação na objectiva do observador presente. Testemunha esta (não mais que nós próprios espectadores) que, no fim e acima de tudo, tanto (pensa que) percebe, como se carrega ao interpretar ou simplesmente se entrega às múltiplas dúvidas existentes (e fabricadas), de que aliás não se livrará mesmo no final de tamanha e admirável experiência. Um filme apaixonante.


Jorge Teixeira
classificação: 8/10

20.9.13

Manual de Regras (8)

Apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo.

The Usual Suspects (1995)
Os Suspeitos do Costume, Bryan Singer

16.9.13

À Boleia (8)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Sofia Santos, autora do blogue girl on film.
Obrigado, Sofia, pela colaboração.

Caminho Largo: Como percepcionas, expressas e traduzes a qualidade ou não de um filme?

Sofia Santos: A resposta a esta pergunta não é fácil. Tenho total consciência de que não sou expert na matéria e sei que não sou ninguém para dizer que um filme é bom ou mau, que tem qualidade ou não. Limito-me a opinar. Mentiria se escrevesse que os meus gostos pessoais nunca interferem na perceção que tenho de um filme. Interferem e bastante. Tal como a simpatia ou antipatia por uma banda musical, por um clube de futebol, uma marca de relógios ou pelo cheiro de um perfume, as simpatias e os ódios também existem para com um filme.
Só há pouco tempo comecei a dar “notas” aos filmes. E mesmo assim com alguma dificuldade, sobretudo porque tenho noção que por vezes sou injusta ou então muito benevolente com certos filmes. A minha tabela vai do zero ao dez. Nunca dei um zero e também nunca dei um dez. Não se enganem, a nota é puramente criada e pensada por mim, de acordo com critérios pessoais, sem ligar às notas IMDb ou Metacritic
No entanto, na minha tabela quimérica de avaliação, tenho sempre em conta alguns elementos que considero serem factores determinantes para o gosto ou para a aversão sobre um determinado filme...
a) Gosto de fantasia, gosto de ficção cientifica, mas prefiro sempre um filme real. Uma história verossímil, credível, bem alicerçada.
b) Valorizo a transmissão da mensagem de forma clara. Não têm que existir diálogos profundos ou longos, não têm que ser cumpridas cronologias ou sequências narrativas, mas gosto de chegar ao fim do filme e percebê-lo.
c) No entanto, e quase em contradição com o que escrevi anteriormente, gosto de um fim irrequieto. Ou seja, gosto de um filme que me faça sair do cinema inquieta ou a pensar no que ficou em aberto. Poucos são os filmes que conseguem provocar (de forma correcta) esta sensação. Para perceberem melhor o que digo, falo, por exemplo, de um Trance de Danny Boyle.
d) Interpretações. Gosto de um actor/actriz que transmita emoções, sejam elas positivas ou negativas, como a alegria ou a tristeza.
e) A cinematografia - a fotografia, a luz, a cor.
f) Considero também determinante, o tempo – quer das cenas, quer dos diálogos ou silêncios. E já que mencionei “tempo”, os filmes não se medem aos palmos. Um filme longo pode ser um suplício, mas um filme curto pode ser igualmente castrador. Não há um tempo correcto ou ideal, mas há elementos mínimos a cumprir.
g) A banda sonora, o guarda-roupa e os cenários são elementos que muito aprecio e que considero determinantes para o sucesso ou fracasso do filme. Também o recurso à tecnologia é cada vez mais difícil de ignorar.
h) Valorizo a identificação com a história do filme, com alguma personagem, característica ou ideia.
No entanto, e apesar de considerar que os pontos que elenquei são determinantes, não faço questão de ter uma métrica rígida e inalterável. Tudo é passível de alterações e tudo depende muito do meu estado de espírito ou sentimentos.
Enquanto escrevia estas palavras, lembro-me de Million Dollar Baby, um filme especial, que me incomodou de tal modo que nunca fui capaz de escrever sobre ele, ou de o voltar a ver. A altura em que o vi não podia ter sido a pior e infelizmente marcou-me pela negativa. Assim, apesar da magnitude sentimental do filme, a minha nota iria sempre reflectir aquilo que o filme me fez sentir.

CL: No seu conjunto e na sua especificidade, um filme deve ser comparado a um hipotético livro associado? O cinema deve algo à literatura?

SS: Quando de uma adaptação se trata, tem obrigatoriamente que ser comparado. E, neste caso, comparar o filme ao livro pode ser uma desilusão ou uma surpresa. Recordo a adaptação do The Da Vinci Code ao cinema que nem sequer se pode comparar ao livro, pois o livro (apesar de todas as imprecisões históricas) supera-o a anos-luz. Mas também pode ser uma agradável surpresa adaptativa como aconteceu com The Girl with the Dragon Tattoo. Ou até mais ousadamente, a recente adaptação de Les Misérables de Vítor Hugo por Tom Hooper.
O cinema deve muito à literatura. E cada vez mais a literatura é influenciada pelo cinema. A relação entre as duas artes é vincada pela união ou pela dissidência.
Recordo-me das aulas de Estética, na universidade, em que Ingmar Bergman foi mencionado pela sua afirmação de que o cinema nada tem a ver com a literatura – uma declaração cada vez mais difícil de compreender ou aceitar, se tivermos em conta que dois terços do cinema norte-americano são adaptações literárias.
Penso que a palavra “dever” não será a mais correcta para perceber união/afastamento entre a Literatura e o Cinema. A palavra que une estas duas artes e que também as separa é só uma. É aquela de que ambas são compostas – a narrativa.

CL: A história da sétima arte, no seu largo e diversificado espectro, é fundamental para a idealização e para a produção de um filme? Em que medida?

SS: Se o Caminho Largo me permitir - a resposta a esta pergunta é muito simples: Hugo de Martin Scorsese

CL: A televisão e o cinema, para além de se influenciarem, devem-se acompanhar um do outro? Porquê?

SS: Influenciam-se obviamente, mas não têm que andar acompanhados ou criar laços de parceria. No entanto, um facto é incontornável - cada vez mais o mundo do cinema está a influenciar a televisão. A caixa mágica encontrou nas séries de televisão um potencial indiscutível. As séries são cada vez mais pensadas, mais estruturadas, mais semelhantes a um filme. Estas séries são, também elas, cada vez mais povoadas por estrelas de cinema, que encontram papéis dignos e que em nada envergonham a sua carreira cinematográfica – penso numa Glenn Close (em Damages) ou num Kevin Spacey (em House of Cards). Mas o papel inverso também acontece e também são muitos os actores de séries de televisão que migram para o cinema.
Não acho que deva ser obrigatória aquela moda que pareceu surgir com o fim do Twin Peaks ou de 24 de que o fim das séries devia ser contado nas salas de cinema. Muitos realizadores e argumentistas ainda não perceberam que o truque para uma série se tornar de “culto” está no saber parar. Mas – aqui entre nós - o cinema não pode apontar o dedo, sobretudo nestes últimos anos, em que remakes, prequelas e sequelas estão a ser usadas e abusadas.
O Caminho Largo que me desculpe a provocação, mas é fácil perceber como estes dois mundos, que aparentemente estão próximos, andam, de facto, ainda muito afastados um do outro. Para isso basta, por exemplo, constatar algumas guerras diplomáticas que acontecem no mundo da blogosfera, entre os blogs de cinema, os blogs de televisão e aqueles que são mistos (em que eu me incluo).
Assim, e tentando resumir, influenciam-se, mas não têm nem devem caminhar muito próximos. Para bem do Cinema e da Televisão.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Quentin Tarantino: "Adoro a violência. Às vezes eu acho que Thomas Edison inventou a câmara só para que pudéssemos filmá-la."

SS: Apesar de simpatizar muito com Quentin Tarantino e de achar que a sua forma de filmar a violência é muito interessante, não considero que esta afirmação do realizador seja a melhor ou a mais correcta. É sobretudo muito limitadora. A câmara deve filmar muito mais do que isso. Deve filmar um todo e não só uma característica. Sim, a violência pode ser bela, mas o silêncio de um olhar, um carinho, uma paisagem ou um diálogo, podem conseguir transmitir uma emoção tal, que nenhum tiro ou facada pode igualar.

CCOP: Top de Agosto de 2013



Com trinta e uma longas-metragens estreadas em Portugal durante o mês de Agosto, apenas onze se tornaram elegíveis para o top do CCOP, provavelmente por este ser um mês tipicamente de férias (dado curioso: apenas uma produção não norte-americana obteve amostragem suficiente). Mais uma vez e pelo segundo mês consecutivo, nenhuma das novas estreias conseguiu dar entrada no top 10 anual - que permanece assim inalterado. O sucesso de A Gaiola Dourada (produção francesa, realizada por um luso-francês e com elenco e história maioritariamente nacionais) não permaneceu também alheio aos membros do CCOP. O filme que já foi visto por quase 600 mil espectadores em Portugal, recebeu a nota média de 7,44 (o mesmo valor que o 29.º classificado de 2012 - Kill List (Uma Lista a Abater) - conseguiu). O mais recente trabalho de Sofia Coppola, Bling Ring conseguiu uma votação média o suficiente para ocupar a segunda posição do pódio, mas os 6,75 de nota comprovam que o filme dividiu também os membros do CCOP. A surpresa surge na terceira posição: Michael Bay e o seu Pain & Gain (Dá & Leva) conseguiram uma média de 6,57.

Para consultar o top anual e todos os tops anteriores, assim qualquer outra informação, ir ao site oficial do Círculo de Críticos Online Portugueses aqui. Eis então o top completo dos filmes, com suficiente amostragem, estreados em Portugal em Agosto de 2013:

1. La Cage Dorée (2013)
A Gaiola Dourada, Ruben Alves | 7,44
2. The Bling Ring (2013)
Bling Ring: O Gangue de Hollywood, Sofia Coppola | 6,75
3. Pain & Gain (2013)
Dá & Leva, Michael Bay | 6,57
4. The Iceman (2012)
Um Homem de Família, Ariel Vromen | 6,38
5. The Innkeepers (2011)
Hóspedes IndesejadosTi West | 6,33
6. Kick-Ass 2 (2013)
Kick-Ass 2: Agora é a DoerNicolas Jeff Wadlow | 6,17
7. Elysium (2013)
Neill Blomkamp | 5,92
8. Red 2 (2013)
Red 2: Ainda Mais PerigososDean Parisot | 5,20
9. We're the Millers (2013)
Trip de FamíliaRawson Marshall Thurber | 5,00
10. The Lone Ranger (2013)
O Mascarilha, Gore Verbinski | 4,71
11. Jobs (2013)
Joshua Michael Stern | 4,40

14.9.13

Conversas Anónimas (3)

La Cage Dorée (2013), Ruben Alves


Sujeito X: Não sei se já foste ver A Gaiola Dourada ao cinema, mas o que achas do número recorde de espectadores que já o viram? É bom sinal ou sinal dos tempos?
Sujeito Y: É bom sinal, claro. Acho muito bem. Gosto imenso que o cinema em Portugal continue a ter espectadores, ainda que estejamos numa fase descendente, e se possível até que tenha mais sucessos como este. É um caso de estudo.
X: Mas então, já viste o filme?
Y: Sim, já. E talvez perceba melhor, por isso, a enchente que tem tido pelo país fora. Os resultados semanais têm surgido muito por culpa do "passa a palavra", do aconselhamento entusiasmado a familiares e amigos, que se identificam e que não resistem a falar do filme.
X: E, no fim de contas, o filme é mesmo bom ou é dos tais que entretém e diverte apenas e só?
Y: Eu acho que é bom, ainda que não seja nada de extraordinário. Diverte, sem dúvida, mas também tem o seu cunho de aprendizagem, de envolvimento numa cultura e numa geração em conflito com outra. O filme é francês, mas tem tanto ou mais de português, o que diz tudo.
X: E não será fácil por isso? Essa identificação que, logo à partida, tem por parte de um povo não o catapulta de imediato para o êxito que tem tido?
Y: Sim, claro, é óbvio esse reconhecimento, tão português de uma geração e de um tempo tão difíceis, onde emigrar era a única solução e onde as dificuldades que se adivinhavam eram apenas o início de uma longa e amarga vida de estranheza. Uma vida por vezes de não pertença a qualquer lado, porque se acaba por desligar-se de um país, o de origem, para se habitar noutro que nunca será igual, inevitavelmente, ao primeiro.
X: Portanto, trata-se de um filme feliz, fruto da história e das acções de um país. Não terá ainda assim outros valores ocultos que o sustentam por outro lado?
Y: Com certeza. A competência do realizador e em geral de toda a produção é evidente. Estamos perante um filme que executa, e se executa, muito bem. Nada a apontar. Aliás, sou daquelas pessoas que não gosta de o descredibilizar só porque tem como principal objectivo entreter ou distrair um povo que, nos dias de hoje, vive sob uma grande crise. Pelo contrário, gosto de pensar que são estes exemplos que nos completam no dia-a-dia, que nos unem mais e que nos relembram as pessoas ou os portugueses que orgulhosamente somos. Sem máscaras, sem artifícios e sem preconceitos de criticarmos (e de gostarmos) dos jeitos e trejeitos que temos, tão simplesmente.
X: Nesse sentido, desvalorizas algumas críticas mais acesas e desprestigiantes?
Y: Embora as perceba, sim, desvalorizo completamente. Oxalá houvesse mais exemplares destes, com esta capacidade de mover as pessoas. E, a meu ver, o cinema só ganha com isso.

Nota: O conteúdo destas "Conversas" não reflecte, necessariamente, as opiniões dos autores do blogue. 

11.9.13

1 Tema, 3 Filmes (10)

Terrorismo

United 93 (2006)
Voo 93, Paul Greengrass

World Trade Center (2006)
Oliver Stone

Zero Dark Thirty (2012)
00:30 A Hora Negra, Kathryn Bigelow

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

9.9.13

À Boleia (7)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: David Lourenço, autor do blogue O Narrador Subjectivo.
Obrigado, David, pela colaboração.

Caminho Largo: No cômputo geral o que privilegias mais num filme tendo em conta uma avaliação final?

David Lourenço: Interesso-me por personagens contraditórias ou instáveis, que nos piores momentos são motivadas ou paralisadas pelas suas melhores memórias, filmes sobre fé, onde se sente o peso das dúvidas e das certezas, ou sobre violência, como uns lhe resistem e outros a utilizam, gosto de realismo mágico e de planos-sequência… mas não me perturba dar uma nota alta a um filme que não tenha nada a ver com isto, se for bom no que tenta fazer. É essencial perceber do que gostamos e procurá-lo, esse toque pessoal é que separa um bom filme de uma obra-prima, contudo também é correcto recompensar a competência por si só. Fazer uma avaliação do que quer que seja implica uma grande versatilidade de conhecimento e, assim, a única solução para perceber o contexto, referências e afins de um filme e ao mesmo tempo definirmos uma identidade enquanto espectadores e críticos é ver filmes – muitos filmes.

CL: Em que sentido os planos, os movimentos de câmera e toda a filmagem em si determina o resultado ou a montagem de um filme? A qualidade do mesmo está mais dependente destes aspectos ou do argumento inicial?

DL: Durante a filmagem, a visão do realizador condiciona indelevelmente a imagem, mas é na sala de montagem que o registo fílmico adquire o significado pretendido. A primeira fase é a produção de um puzzle, a segunda é a resolução do puzzle. Em 2012 estive numa palestra da Sylvie Landra, editora frequente dos filmes de Luc Besson, onde, entre outras coisas, ela analisou vários dos seus trabalhos, explorando, mais à frente, como o mesmo material pode ser manipulado para obter resultados diferentes, por isso, partindo do princípio de que o realizador tem uma ideia clara do que pretende, parece-me mais fácil atingi-la mantendo uma relação de proximidade com o editor do filme (como Scorsese) ou assumindo ele mesmo essa função (como os irmãos Coen). Quanto ao argumento, a influência parece-me ser residual quando comparando com a efectiva captura da imagem ou o arranjo das imagens capturadas.

CL: Tendo em conta a sua subsistência e pertinência, por onde deverá o cinema mais enveredar, por autores ou por uma indústria?

DL: O que pessoal como David Fincher ou Christopher Nolan prova é que o cinema mais comercial pode ter um cunho próprio, relevo estilístico ou o mínimo de profundidade. Por outro lado, há muitos supostos autores que se entretêm a mamar subsídios para dar corpo a ideias estapafúrdias, basta lembrar que vivemos no país em que os contribuintes pagaram mais de meio milhão de euros para João César Monteiro fazer um filme sem imagem. Acho que este paradigma está em extinção, porque há autores dentro da indústria e indústria à volta de autores independentes, veja-se como ainda no ano passado o Amour do Michael Haneke custou 6,5 milhões de euros e rendeu mais do dobro. Por outras palavras, a questão é cada vez mais unicamente financeira, logo a responsabilidade é do público, que, num mundo ideal, devia preferir cinema com forma e conteúdo esclarecidos, independentemente da escala ou orçamento, ao invés de escapismo superficial ou diarreia intelectual.

CL: Existirá algo de objectivo na interpretação e contemplação do objecto artístico? Em que perspectiva a subjectividade no cinema adquire contornos inquestionáveis através de listas ou referências sempre semelhantes?

DL: A intemporalidade de um filme, o seu impacto ou a eficácia com que todos os que nele trabalharam conseguem, em conjunto, atingir um determinado efeito, podem ser consensuais, e nessa perspectiva percebo, por exemplo, que Psycho, The Godfather ou Citizen Kane venham sempre à baila quando se fala dos melhores de sempre, mas nunca são unânimes, porque a arte respira subjectividade, caso contrário seria ciência. A única semelhança entre arte e ciência é o respeito pela dúvida, mas numa a dúvida é o fim, na outra é o ponto de partida. Do cinema quero algo que satisfaça a minha sensibilidade e que meta o meu cérebro a funcionar. Como ninguém é igual e os gostos discutem-se (sim, acabo de usar um ditado e inverter outro na mesma frase), penso que qualquer defesa ou crítica a um filme é questionável, simplesmente concordo com umas e discordo de outras. O mesmo serve para as listas – se eu fizer uma dos meus filmes preferidos espero que seja a minha imagem.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Ingmar Bergman: "Filmes são sonhos, filmes são música. Nenhuma arte passa na nossa consciência da maneira que um filme passa, e vai directamente aos nossos sentimentos, mergulhando nos quartos escuros da nossa alma."

DL: Se houve alguém que percebia de quartos escuros foi o Bergman. Não há nada mais poderoso que uma imagem, é algo definitivo e, simultaneamente, passível de acordar as mais diferentes emoções em quem a vê.

5.9.13

Bandas Sonoras (8)

Carrie (1976), Brian De Palma



Música triste, doce e confortante ao mesmo tempo. O perfeito encaixe e união para com a protagonista e a sua respectiva personalidade. Tema composto e dirigido pelo compositor italiano Pino Donaggio no início de uma longa parceria com o realizador Brian De Palma, que nos oferece aqui o seu trabalho e a sua competência na harmonia que impõe e expõe para dentro da atmosfera, da história e das emoções vividas. Pautada e introspectiva, mas também perturbadora e impulsiva, é uma faixa, dentro do espírito, de sugestão quase obrigatória.

3.9.13

Tokyo Story (Tôkyô monogatari) (1953)

Viagem a Tóquio, Yasujirô Ozu


Um dos filmes mais aclamados de Yasujirô Ozu é paradoxalmente um dos mais tristes e melancólicos da sua carreira, não pelo sentido cinematográfico em si, mas pelo sentido vivencial, terreno e emocional, que nos rasga, nos fere e nos consciencializa, em última análise, com a perda de algo ou de alguém que, eventualmente, não dedicamos tempo suficiente. Trata-se, acima de tudo, de (mais) uma incursão do cineasta japonês pelos meandros da vida comum, das origens, das relações humanas mais próximas, de questões geracionais e do próprio esgotamento das mesmas.

Viagem a Tóquio é um filme, antes de mais, sobre a família, sobre os costumes do dia-a-dia, sobre o peso dos anos (que não findam), sobre o crescimento, sobre a convivência vulgar, diária e difícil de sustentar, de equilibrar e de revitalizar. Os nossos, a nossa família, é única, é insubstituível, é um dado adquirido (mas também por adquirir, por degustar) no bom e no mau sentido, isto é, quando as coisas correm bem ou quando as coisas correm menos bem. Por isso, convenhamos, nem sempre é fácil a coabitação, a intimidade, a lembrança, a confrontação de preocupações de pais e filhos e o encaixe familiar entre os diversos membros em fases distintas de idade, por mais que a saudade e a união depois prevaleça na memória. Geralmente, e à posteriori, é quando menos se espera que a realidade, e a verdade, caem sobre nós, fulminantes, ultrajantes, impetuosas, que nem balas perdidas. Perfeitamente normal, diria, e que corresponde tão simplesmente à passagem das pessoas por diferentes estágios da vida, da irreverência e indiferença ao amadurecimento e à velhice.

Por outro lado, é também um filme sobre a frieza e a rigidez do sistema social e de tudo aquilo que nos regula e nos limita numa comunidade. Os pais criam, educam e formam os filhos, que por sua vez acabam décadas mais tarde por ter de cuidar reciprocamente dos seus progenitores, ou, no contexto do próprio filme, abandoná-los ficticiamente e, porque não, negligenciá-los cruel e amargamente em detrimento do trabalho e do seu núcleo familiar. É o curso natural, ao que parece, da vida, das limitações do espaço, da emancipação, do próprio Homem e da força da contemporaneidade. O conflito entre tradição e modernidade é também ele aqui retratado e exposto mais que não seja pelo impulso e pela firmeza que o novo detém sobre o velho, que a actualidade detém sobre a antiguidade (factos e valores, aliás, que são transversais do Oriente para o Ocidente e que sobrevivem até hoje, o que demonstra a intemporalidade e a universalidade do filme). Condenável, ainda assim, e de reflectir perante o que assistimos, principalmente, no que à solidão dos que já educaram e ao uso do quotidiano dos que educam, diz respeito.


E é aqui que entra, provavelmente, o código ou o pensamento mais predominante e mais fracturante de toda a película - o tempo. O seu uso e a sua exploração são, amiúde, espelhados em Ozu. No caso particular de Tokyo Story, é dado especial ênfase ao tempo enquanto passagem, enquanto meio e enquanto rosto. De um lado, o tempo é diferente para cada personagem, o seu ritmo, as suas prioridades, a sua experiência e a sua mastigação dos constantes problemas, por outro, o tempo é sinónimo de fatalidade, de exigência e de existência, para tudo e para todos. É, no fundo e em última instância, sobre a morte e sobre o fim de que falamos, e do que daí acarreta ou conduz em termos pessoais e culturais. O que nos diz Ozu é que dado a impossibilidade de estagnar ou paralisar o tempo, leia-se certos e determinados momentos, há que tentar, pois, consertar e acordar uma relação mais honesta para com o mesmo, reconhecer a sua autonomia e a sua força, e receber com satisfação os seus abrandamentos e acelerações, de forma a suavizarmos a sua dureza. Tem de existir como que uma entrega à (im)previsibilidade da vida e ao destino traçado para e por nós, inevitável e inconscientemente.

Essa cedência e essa rendição ao tempo, porém, não se desenvolve e se efectua apenas no argumento da história aqui analisada, e logo unicamente através da palavra e do diálogo. Também se perpetua, como é evidente e indissociável no cinema de Ozu, no campo da imagem e da realização, em cada plano e em cada cena da subtil filmagem que desfila defronte dos nossos olhos e demais sentidos. Como uma ave que voa sem parar e que nunca regressa pelo mesmo caminho, a cadência dos enquadramentos revelam uma viagem silenciosa, sincera, calma e sempre com o seu ar de frescura (ou de fresco, numa fotografia primorosa), ora pelos interiores, distantes, próximos e seguros simultaneamente, ora pelos exteriores, contemplativos e ressonantemente eternos. Na verdade, são, aqui e ali, planos vazios, como é costume dizer-se da formalidade do realizador, na medida em que encerram significados incompletos (o da morte não será porventura o maior?), que não se esgotam, antes se projectam em pequenos travellings além fronteiras, em direcção ao nada e ao tudo que é alcançável por cada um de nós, e que aqui se reduz ao olhar omnipresente, que observa mas não influencia. A escala é, deste modo, também ela personagem, sobretudo, na posição inferior e humana que a câmera assume disciplinarmente, num cinema mais horizontal e atemporal que propriamente perpendicular ou efémero (e ainda que o seja por vezes narrativa e simbolicamente).


Num dos últimos planos do filme, um comboio passa de um lado ao outro, move-se com a certeza de que dentro de alguns momentos já não estará mais no nosso campo visual, e isso, mais que tudo, revela ou oferece a noção que impera em toda a história - a passagem do tempo e a (aparente) incapacidade de revertê-lo e de aproveitá-lo consoante as nossas hesitações e os nossos erros. Para os que vão, existirá certamente sempre algo que gostariam ainda de ter feito ou dito, e para os que ficam, resta a amargura de uma palavra ou de um gesto que nunca mais transmitirão, ou, noutra perspectiva, a memória de alguém que lhe marcou a identidade e a personalidade como nenhum outro ser. Uma obra-prima, que tem tanto de concreto e de mundano como de transcendental.

Crítica nomeada em 'Melhor Crítica de Cinema' nos TCN Blog Awards 2013


Jorge Teixeira
classificação: 10/10