27.5.14

Percursos (4)

Entre o filme, a vida e o sonho


No campo da fantasia e do escape temporal ou espacial não haverá muitos exemplos com a originalidade, a sensibilidade e a pujança de El Laberinto del Fauno. O filme de Guillermo Del Toro será mesma peça rara e uma investida improvável, séria e coesa, nos tempos recentes, no que a história de encantar, deslumbrar e efabular diz respeito. A mistura constante entre realidade e ficção ou entre a dureza e a conformidade do dia-a-dia e a imaginação ocasional desejada, à frente e atrás das câmeras, confere, recorrentemente, um sentido assaz credível e equilibrado, quase justo e justificativo, o que torna prontamente aceitável qualquer identificação plausível para com o enredo e as sensações nostálgicas envolvidas.

Com o início e um cenário de absolutismo, somos, desde logo, transportados para uma família, para uma criança e para um conflito que, à partida, se avizinha periclitante, problemático e deveras complexo (um pouco como qualquer vida ou rotina - aqui extrapolada - sempre passível de potencialmente se transformar). Conflito este, interno e de possante cariz físico ou concreto, se atendermos ao drama implícito e palpável, porque na verdade, e por contraste, o irreal, o inexplicável e a evasão se situa depois na mente e no subconsciente da inocente protagonista, e de todo o centro ingénuo do filme. Somos, pois e por sua vez, como que tele-transportados para outro mundo ou para outra dimensão utópica, sensacional e visionária, de tão metafórica e certeira que se afigura ou se desenha espontaneamente face às personagens e ao espectador. Em suma, a todos nós, na medida em que seguimos com total deleite, e simultâneo receio, as peripécias vividas pela imaginação de Ofelia (quiçá pela sua ascensão efectiva a outro estado disponível e desconhecido), e o seu desejo de fuga ao quotidiano cruel, num ameaçador contexto de guerra e de regime fascista, entre constantes temores, segredos e terríveis torturas.

Não será, portanto, de estranhar que nutre bastante identificação por este filme, e por este tipo de abordagem, uma vez que a aventura, a absorção e a fantasia foram continuamente, da minha parte, objecto de fascínio, de dedicação e de preenchimento dos tempos livres, sobretudo, na infância e numa fase de sistemática vontade de abstracção, de sonhos e de destinos impossíveis, mas não menos satisfatórios. Uma relação que não se esgota, apenas e só, na narrativa paralela e sedutora habitada pelo estranho Fauno, e interpretada por nós, mas que existe também na atmosfera cromática e na ambiência musical encantadora, que, no conjunto e esteticamente, conferem uma experiência intima e fortemente nostálgica e que, no fim, reconhecemos como preciosa, útil e por demais saborosa. Definitivamente, e ainda que no campo do devaneio e da ilusão partilhadas, um filme que vi e já vivi, inclusive diversas vezes e intensamente, dentro e fora do ecrã, até porque ficção ou sonho é também concepção e criatividade ou, se quisermos, sinónimo de divertimento, alegria e consciência.

Texto originalmente publicado na iniciativa 'Já Vi(vi) este Filme' do blogue Hoje vi(vi) um filme

16.5.14

Percursos (3)

Com Charlie Chaplin


Talvez comece por dizer que Chaplin, ou a figura desajeitada e deambulatória de Charlot, desde cedo invadiu, alojou, se espreguiçou e passeou pela minha memória, porventura pelo meu subconsciente, como aquela peça na engrenagem que é necessária, mas que durante muito tempo nem nos apercebemos da sua importância e da sua preponderância, vital para o entendimento e funcionamento de toda uma máquina, no caso, a máquina do cinema e da arte associada e, portanto, de muito do conhecimento e da cultura retida e apreendida gradualmente e ao longo do nosso crescimento.

Numa viagem pelo passado, lembro-me distintamente do momento em que me deparei, qual encruzilhada, com Charles Chaplin, num então fortuito visionamento sobre a vida e obra do homem, do cineasta e do actor. O percurso de tão ilustre e famoso senhor é conhecido e, mais importante, reconhecido, e ainda assim, não deixa sempre de impressionar o relato dos seus feitos, das suas crenças e dos seus ideais, muitas vezes, em períodos negros da nossa história recente. Daí que, embora este visionamento tenha sido durante a infância, o fascínio e, sobretudo, a reverência ficou, assentou e depois permaneceu sem que me tenha apercebido totalmente, até pela não compreensão integral do que havia testemunhado.

Anos mais tarde, e novamente fruto do acaso, deu-se nova confrontação com o indivíduo do bigode, do chapéu e da bengala, desta feita um encontro de espectador-cineasta mais conhecedor e mais ciente da expectativa e da importância do que iria então assistir e, enfim, reflectir, até porque agora seria uma visita pelas suas obras e pelos seus filmes, e não tanto pela sua vida activa. A descoberta foi, à data, recompensatória, e mais do que isso, tremendamente satisfatória, numa perfeita simbiose entre entretenimento e arte, entre divertimento e aprendizagem, entre um objectivo e um objecto cinematográficos, não fosse Chaplin um fundador do cinema, do seu nascimento e dos seus alicerces linguísticos, do mudo ao sonoro, tendo o primeiro propositadamente muito mais espaço e tempo de manobra.

De The Kid a Modern Times, as descobertas foram imensas, e sempre pautadas pelo prazer de uma boa sessão, e o consequente e inerente crescimento adjacente. De uma curta a uma longa-metragem houve e há sempre qualquer ilação, crítica ou mensagem a retirar, no mínimo, uma história ou um relato para pensar e para matutar nas próximas horas vagas, e isto porque o vazio deixado após a visualização, na posterior ausência da companhia de Charlot, é invariavelmente sentida e, interiormente, partilhada por um colectivo que sem a presença do cavalheiro inglês não sabe reconhecer o cinema e a sua história. De facto, se há um nome que é indissociável da sétima arte e da sua cultura original e nuclear, esse nome é indubitavelmente Sir Charles Chaplin. Para muitos, será mesmo o cerne e a verdadeira ligação do cinema ao quotidiano e às pessoas, para não dizer também à maioria dos movimentos artísticos e realizadores que definiram e definem, hoje em dia, décadas posteriores de desenvolvimento e assentamento de toda uma arte.

Pessoalmente, tenho Chaplin como uma referência enorme, um pilar fundamental na minha relação com o cinema e com a gestão, regular e ponderada, de visualizações e investidas por este mundo de fantasias e realidades. Mundo este que o realizador sempre soube abordar e, não raras vezes, questionar, a tal ponto que as suas análises e os seus ensaios, na forma de narrativas e filmagens, são hoje exemplos maiores nas escolas e nas casas de quem souber, e de quem quiser, conhecer alguns ensinamentos e provavelmente alguns acontecimentos fulcrais da nossa existência, sempre em constante aperfeiçoamento. Do discurso de The Great Dictator à ternura de City Lights, passando pela consciência e sapiência de The Gold Rush, há muito por onde explorar e apreciar, sobretudo, no seio de um período mudo em que as dinâmicas e as sugestões atingiam altos valores e influências, porventura as mais acertadas e as mais honestas de todas, sem a limitação e, por vezes, a naturalidade e a linearidade que existe actualmente.

Se o meu envolvimento e a minha evolução nesta área tem sido crescente e cada vez mais esclarecido, deve-se e muito às raízes ou aos elementos estruturais, quiçá parte da estrutura total (sempre incompleta), onde se encontra a presença e a irreverência do homem, do autor e da figura de pequeno vagabundo vulgarmente denominada de Charlie Chaplin. Com calças largas, sapatos enormes e um andar desconjuntado, engraçado e intimamente amigável, foi, é e será sempre uma referência para a sétima arte e, acima de tudo, para o imaginário de cada um de nós. Diria que, no fundo, há os que reconhecem a personagem e os que veneram a mesma, ou, por outro, os que desfrutam do seu papel e percurso artísticos e os que ainda não sabem que desfrutam.

Texto originalmente publicado na iniciativa 'Charlot & Eu' do site Cinema 7ª Arte

6.5.14

Citações (13)

Se7en (1995), David Fincher


William SomersetErnest Hemingway once wrote, "The world is a fine place and worth fighting for." I agree with the second part.