25.8.13

À Boleia (5)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Tiago Resende, autor do site Cinema 7ª Arte.
Obrigado, Tiago, pela colaboração.

Caminho Largo: Quais os ingredientes essenciais para uma receita saborosa ou a partir do qual um filme se pode tornar bom?

Tiago Resende: D.W. Griffith, o pai da linguagem narrativa, dizia que “para fazer um filme basta uma rapariga e uma arma”. No género Film Noir encontramos muito essa ideia, em ambientes expressionistas, com personagens masculinas anti-heróis, muitas vezes detectives privados que eram corruptos. Em muitos filmes noir o homem era fraco e a sua vida era arruinada quando este era apanhado numa teia de paixão e engano, por personagens femininas com o estereotipo de femme fatale. “The Maltese Falcon” (1930), “The Big Sleep” (1939), e “Sunset Boulevard” (1950) são alguns exemplos de filmes noir que contem precisamente esses ‘ingredientes essenciais’ para um bom filme. Godard materializou a máxima de Griffith em “Bando à Parte” (1964), que é uma homenagem aos filmes policias de Hollywood dos anos 40. Também em “Taxi Driver” (1976), por exemplo, é aplicada esta ideia. Já para outros, um bom argumento faz sempre um bom filme. É certo que existem, desde os primórdios do cinema, formulas para tornar um filme em algo vendável e apelativo a grandes audiências. Isso não o torna necessariamente bom. São formatos que já foram testados e que funcionam. Neste campo, o cinema americano especializou-se bastante a partir dos anos 30. Daí termos hoje realizadores como Quentin Tarantino que consegue ter sempre bons filmes, muito graças aos seus extraordinários argumentos. Há ainda aqueles que defendem que um bom filme deve ser aquele que apresenta uma boa ideia, um bom conceito. Já dizia João Botelho que fazia um filme com apenas uma árvore, por exemplo. O que torna um filme bom? O que para mim é um filme bom, para outra pessoa não o é. Ora, entramos assim no campo do juízo de gosto do espectador. Na minha opinião, um bom filme tem de ser original em todos os campos. No entanto, os campos do conceito e depois do argumento, são, a meu ver, os mais importantes. Se tivermos uma boa ideia temos à partida um bom filme. Tecnicamente o filme pode não ser perfeito, mas se a ideia for original, isso é algo que me interessa. Mas nem sempre isso acontece, pois o lado técnico de um filme é sempre importante. É preciso haver uma boa fotografia, um bom tratamento de som, uma boa montagem, uma boa direção de atores e por fim uma boa realização, que permita que todos estes campos funcionem em conjunto, sempre com o mesmo objectivo, obter um bom filme. Evidentemente que também temos o contrário, ou seja, em que a técnica se sobrepõe ao conceito. Disso está o cinema cheio de exemplos. Basta irmos a Hollywood. É aqui que se distingue muitas vezes o cinema comercial do cinema de autor. Não quer isto dizer que seja uma regra, pois há sempre casos em não verificamos isso.

CL: A figura humana ou o papel do actor é importante e indissociável de qualquer produto cinematográfico?

TR: Penso que a figura humana é importante, sim, mas não é indissociável de um filme. Quando o cinematógrafo foi inventado, em finais do século XIX, fizeram-se grandes investimentos no estudo da natureza, dos animais, das máquinas e sobretudo do homem. É no inicio do século XX que começa a existir uma maior preocupação com o Outro. Uma preocupação com o humano, em termos de estudos sociais, políticos e filosóficos. Daqui surge aliás a antropologia e o cinema etnográfico. Quando falamos da figura humana no cinema estamos a referir-nos aos atores e aos não atores. O papel do ator é importante e é visto no cinema chama-do de ‘ficção’. Daqui surgiu o star system, que criou modas e tendências em figuras masculinas e femininas. Já o papel do não ator está associado ao documentário, ao cinema do real. Normalmente entendidos como não atores profissionais, estes existem desde os inícios do cinema. Na verdade, os primeiros filmes dos irmãos Lumière e do Aurélio Paz dos Reis, por exemplo, podem ser considerados documentários, pela questão dos não-atores. Pois nunca saberemos se eles filmaram as pessoas sem que estas se apercebessem de que estavam a ser filmadas. Embora agora possamos entrar no campo da manipulação do cinema. Sim, porque todo o cinema é manipulado, até mesmo o documentário.

CL: No cinema o entretenimento e a arte devem-se sempre acompanhar um do outro? Ou em alguns casos um pode-se sobrepor fortemente ao outro?

TR: Esta é uma questão muitas vezes debatida. Acredito que há espaço para todos, para o cinema comercial e para o cinema de autor. O cinema começou aliás nos seus primórdios como forma de entretenimento, mas não acredito que no cinema o entretenimento e a arte devem-se sempre acompanhar um do outro. Sempre, não! Normalmente associamos que o gosto da crítica está no cinema de arte e o do público no cinema de entretenimento. No entanto, não é a questão do ‘bom gosto’ que está aqui em causa. Acho que deve haver respeito pelas duas partes. Enquanto que o público prefere ser entretido com realizadores como James Cameron, Christopher Nolan, Michael BayPeter Jackson ou Zack Snyder, já a crítica prefere realizadores como Nanni Moretti, Agnes Varda, Godard, os irmãos Dardenne ou Koreeda, por exemplo. Depois existem muitos exemplos de realizadores em que os dois (entretenimento e arte) se acompanham um do outro, como é o caso de Spielberg, Scorsese ou Kubrick, por exemplo. São casos onde o sucesso de crítica e de público são inquestionáveis. Para mim o cinema deve ser feito e visto como arte, nunca como entretenimento. Não quer dizer que não veja também cinema de entretenimento, pois às vezes também gosto de ser ‘entretido’ e despreocupado com o objecto que está à minha frente. Mas não deve ser um hábito, pois o cinema merece ser visto como algo que nos faz pensar sobre qualquer coisa, como algo que nos faz sentir alguma coisa. Pelo que, não defendo que devemos ver cinema para nos ocupar o tempo e aliviar o olhar. É consumir por consumir. Mas será o cinema uma arte? É uma arte impura! O cinema, sendo uma arte impura, pois apropria-se de todas as outras e tem de imediato um defeito de realismo, será sempre uma representação do real. A verdade verdadeira está sempre escondida, pois há sempre algo que condiciona, pelo que é impossível registar o real. Para o cineasta Robert Bresson, o cinema não é um meio de reprodução, mas de expressão: “I’d rather people feel a film before understanding it”. Eu partilho por completo este pensamento. Para mim o cinema é acima de tudo sentimentos, expressões, emoções, é a vida em imagens. Gosto muito mais depressa de um filme que me faça viver todas essas emoções, do que um que não faça. Para mim, o cinema deve ser sentido.

CL: Em que sentido as novas tecnologias serviram e podem servir a sétima arte?

TR: Elas tem servido para o bem e para o mal. O cinema democratizou-se, é verdade. Se por um lado é mais fácil termos acesso a câmaras de vídeo bastante mais baratas, que nos proporcionam uma qualidade de imagem e de som quase profissionais, o que leva a que toda a gente possa livremente fazer filmes, criando uma grande variedade de oferta cultural; por outro lado, tal como aconteceu com a fotografia, parece que hoje em dia todos são ‘realizadores’, ou seja, toda a gente hoje filma, realiza e edita e partilha o seu trabalho na internet. Não quero com isto dizer que é errado, pois não é. Vivemos numa era de cultura partilhada. Acontece é que as imagens, seja imagens fixas ou em movimento, banalizaram-se. Ela (a imagem) aparece em todo o lado, repetida ou em versões diferentes. O acesso à imagem democratizou-se, é certo, mas tornou-se vulgar, levando o ser humano a não questionar o que vê à frente dos seus olhos. Por outro lado é mais fácil o acesso a um grande numero de filmes, que de outra forma não seria possível. Ainda por cima de forma gratuita, em plataformas online como o Youtube e Vimeo. Um aluno de cinema, por exemplo, pode hoje fazer o curso todo através do Youtube, pois encontra lá todos os filmes que necessita de ver. No meu caso, por exemplo, graças ao Youtube pude ver grandes clássicos do cinema, documentários raros e filmes mudos, que de outra forma teria sido quase impossível. Ou seja, esta democratização do cinema é essencialmente uma coisa boa. Mas mais uma vez existem os contras disto. Vamos menos ao cinema. O modo como vemos cinema distancia-se cada vez mais dessa magia nostálgica do velho cinema. Hoje não vamos ao cinema, vemos um filme em casa, na televisão ou no computador, ou até num tablet ou num smartphone. Assistimos hoje à batalha película vs digital. Em Portugal já praticamente não se filma em película, até porque a Tobis fechou, infelizmente. A sua morte (da película) é apontada para entre 2013 e 2015. Será também possível fazer-se cinema em digital? Será este formato melhor que o analógico? Não há dúvida que o digital veio democratizar o acesso a quem quer fazer e ver cinema. Mas a superior qualidade da imagem é inegável na película, pela sua maior informação e textura. O que será do cinema depois do fim da película? De que cinema falaremos nós? Não sei. Mas a mesma coisa não será certamente. João César Monteiro disse uma vez: “O que acontece quando vivemos sem o cinema? Ficamos mais pobres”. Concordando por inteiro com o que ele diz, acrescentando ainda que, sem o cinema a vida não faz sentido.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Charles Chaplin: "Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação."

TR: Curiosa escolha, a de Chaplin, porque eu cresci com o seu cinema. Precisamente o seu cinema faz-nos sonhar, ergue-nos a imaginação. Tendo sempre os seus filmes abordado questões reais da sociedade humana, como a pobreza, a fome, a guerra, a política, a crise, etc, todas elas foram sempre tratadas com bastante imaginação. Todos os filmes de Chaplin criticavam a sociedade, sempre com recurso ao burlesco e à sátira. Basta vermos o exemplo da sua personagem mundialmente famosa, Charlot. Um vagabundo que se tenta vestir como um rico: calças largas e curtas, sapatos demasiados grandes e rotos, uma bengala e um chapéu de coco. Ou por exemplo a cena em “A Quimera do Ouro”, em que Charlot come os próprios sapatos; ou quando Charlot é confundido como um líder comunista em “Tempos Modernos”; ou a cena final em que um barbeiro judeu é confundido com Hitler e discursa um dos mais belos discursos da humanidade. Chaplin mostra-nos sempre um real imaginado. Este era o mundo imaginário de Charles Chaplina sua realidade. Mas o que é o real? O cinema é e sempre foi uma interpretação da realidade. Nunca o saberemos. “A realidade está aí, para quê manipulá-la”, afirmava o cineasta italiano Roberto Rossellini. Assim, tenta-se através de imagens em movimento recriar essa ‘realidade’. O documentário é o cinema do real e este é o que está à nossa volta. O cinema é a representação do real e se o documentário também o fosse, seria tudo muito mais fácil. Mas acontece que o documentário é a representação do mundo em que vivemos. A realidade é uma construção. Há um olhar que tenta interpretar e ir ao encontro de uma verdade escondida. Esse olhar obedece a um ponto de vista de um criador. Só há duas verdades, a verdade de quem faz o filme e a verdade de quem vê o filme.

23.8.13

À Pergunta da Resposta (5)

Pergunta:
Um filme que demonstre o que é necessário para nos relembrarmos constantemente de quem somos?

Resposta:
(na resposta à questão está uma palavra a reter, no plural)

(na resposta à questão está uma palavra a reter)

(na resposta à questão está um nome a reter)

Pergunta:
Um filme que demonstre o que é necessário para nos relembrarmos constantemente de quem somos?

Resposta:
A resposta está nas pistas ou no que elas sugerem.
Adivinha qual o filme?
(soluções posteriormente nos comentários)

(os textos e as publicações envolvidas nas pistas são de consulta e leitura obrigatória)

22.8.13

CCOP: Top de Julho de 2013



Em Julho, nenhuma das estreias cinematográficas nacionais teve a oportunidade de figurar no top 10 do ano. Os filmes do top mensal evidenciam o cinema de autor, com o bielorusso Sergei Loznitsa a liderar o top com o filme In the Fog (V Tumane) (No Nevoeiro), com uma média de 7,80 (a mesma nota que O Gebo e a Sombra e Shut Up and Play the Hits conseguiram o ano passado). O mexicano Carlos Reygadas - vencedor do prémio de Melhor Realizador em Cannes 2012 - surge na segunda posição, com Post Tenebras Lux a receber uma nota média de 7,67. Enquanto isso, o francês François Ozon e o seu Dans la Maison (Dentro de Casa) termina o pódio, com a nota de 7,38. Um mês após a entrada de novos membros no CCOP procedeu-se ainda a uma votação de repescagem de todos os títulos estreados em Portugal desde o início do ano. Surpreendentemente e ao contrário de 2012, poucas alterações surgiram no TOP 10 de 2013, com Before Midnight (Antes da Meia-Noite) a manter a liderança com a mesma nota (8,82). Django Unchained (Django Libertado) foi o filme que mais subiu no top 10: apenas vinte e oito centésimas de diferença foram suficientes para o colocar dois lugares acima, agora na quinta posição do top.

Para o top anual, agora após a repescagem, para os tops dos meses anteriores e para qualquer outro tipo de informação, ir ao site oficial do Círculo de Críticos Online Portugueses aqui. Eis então o top completo dos filmes, com suficiente amostragem, estreados em Portugal em Julho de 2013:

1. In the Fog (V Tumane) (2012)
No Nevoeiro, Sergei Loznitsa | 7,80
2. Post Tenebras Lux (2012)
Carlos Reygadas | 7,67
3. Dans la Maison (2012)
Dentro de Casa, François Ozon | 7,38
4. Le Magasin des Suicides (2012)
A Loja dos Suicídios, Patrice Leconte | 7,00
5. Sightseers (2012)
Assassinos de FériasBen Wheatley | 6,60
6. Only God Forgives (2013)
Só Deus PerdoaNicolas Winding Refn | 6,58
7. Despicable Me 2 (2013)
Gru - O Maldisposto 2Pierre Coffin e Chris Renaud | 6,44
8. Adore (2013)
Paixões ProibidasAnne Fontaine | 6,40
9. Pacific Rim (2013)
Batalha do PacíficoGuillermo Del Toro | 6,20
10. The Wolverine (2013)
Wolverine, James Mangold | 6,14
11. Passion (2012)
PaixãoBrian De Palma | 5,85
12. Hysteria (2011)
Boas VibraçõesTanya Wexler | 5,78
13. Redemption (Hummingbird) (2013)
RedençãoSteven Knight | 5,60
14. Turbo (2013)
David Soren | 5,25
15. The Oranges (2011)
A Vida em Oranges, Julian Farino | 4,80
16. After Earth (2013)
Depois da Terra, M. Night Shyamalan | 4,25

20.8.13

O Caminho Largo nas Redes Sociais


O Caminho Largo está finalmente nas redes sociais. Desde o Facebook ao Twitter, passando ainda pelo Google+ ou pelo YouTube, o objectivo é difundir mais e melhor todos os conteúdos aqui partilhados, assim como promover mais debates e outras informações pertinentes, seja na forma rápida e temporária que caracterizam as redes sociais em geral, seja através do acesso a um olhar mais sério e mais calculista.

Portanto, já sabem, divulguem o mais possível estas conexões ou pequenas páginas do Caminho Largo por essa internet fora. Os endereços respectivos encontram-se a partir de agora na barra lateral e no menu superior e inferior do blogue.

8.8.13

1º Aniversário do Caminho Largo




Foi precisamente há um ano que surgiu a primeira publicação no Caminho Largo, naquilo que se tornou o início de um projecto ou de uma fase crítica da vida, de experiências e do conhecimento alcançado e, por isso, merecedor de ser partilhado, no caso no veículo mais apropriado, mais pessoal e mais identificativo de todos - o Cinema.

O percurso se lançou e se demarcou desde logo com críticas e opiniões o mais sustentadas possíveis, que sempre ambicionaram incutir alguma ponderação, algum conhecimento e alguns valores intrínsecos. Em seguida, e paralelamente, o trajecto também passou, e vem passando, pela partilha de imagens, vídeos e listas destacáveis neste universo, para alcançar ainda, e por agora, o lançamento de algumas rubricas e iniciativas que desejam, acima de tudo, promover o debate e a reflexão, assim como a interacção entre os leitores.

Das nomeações aos TCN Blog Awards às colaborações nos CBA e CCOP, o Caminho Largo também se projectou fora de portas e acaba, inclusive, por atingir um estatuto que não era, nem de perto nem de longe, expectável neste primeiro ano, mas que muito nos orgulha e nos motiva a continuar o trabalho até aqui desenvolvido.

Após um ano pelo Caminho Largo, e desta feita renovado e refrescado em jeito de celebração (e daqui a uns dias expandido e enredado), o objectivo é continuar, sempre a caminhar, sempre a partilhar e sempre a melhorar, nesta arte que tem tanto, mas tanto por onde explorar. Por tudo isto e muito mais, e, sobretudo, por todos aqueles que nos acompanham, nos seguem e nos lêem, o nosso muito obrigado.

Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

7.8.13

1 Tema, 3 Filmes (9)

Férias

Les Vacances de Monsieur Hulot (1953)
As Férias do Sr. Hulot, Jacques Tati

Little Miss Sunshine (2006)
Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos, Jonathan Dayton e Valerie Faris

Vicky Cristina Barcelona (2008)
Woody Allen

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

4.8.13

À Boleia (4)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: António Tavares de Figueiredo, autor do blogue Matinée Portuense.
Obrigado, António, pela colaboração.

Caminho Largo: Como avalias abstracta e essencialmente um filme? Ou varia de caso para caso?

António Figueiredo: Desconfio sempre de quem diz poder-se estruturar rigidamente a crítica cinematográfica (ou cinéfila, conforme o autor). Ou de quem rediga seguindo sempre o mesmo modelo. Talvez porque para o fazer há que assumir que todos os filmes são iguais, e que o sendo se propõe todos ao mesmo objectivo. Ora, não me parece que seja esse o caso. Acho que é o filme que "pede a crítica": não faz sentido abordar A e B - que são objectos de valor diferente, seja por que motivo for - de igual maneira, apenas para se chegar à conclusão que um é "melhor" do que o outro. Isso é limitar a função da crítica, enquanto actividade intelectual, ao mero comentário.
Iniciei-me na minha actividade crítica seguindo essa regra da formatação. Fazia uma introdução, expunha a premissa, a estética e a técnica em partes separadas e rematava com uma conclusão. Hoje em dia já não me parece correcto escrever sobre um filme nesses moldes. Continuo sem abdicar da introdução e da conclusão - por as achar necessárias a uma melhor compreensão do leitor do que é o meu entendimento da obra -, mas sou capaz de meter mais facilmente a premissa numa delas; ou de encaixar a estética na técnica, o background de determinado autor nas ideias veiculadas pelo filme. Se tal se justificar, é claro. Há tempos, aquando da exibição do L'ANNÉE DERNIÈRE À MARIENBAD, do Alain Resnais, no último Fantasporto, escrevinhei não sei quantas linhas sem tocar na premissa da obra. E fazia sentido, porque o filme, tal como é, não vive desse factor. Agora, se pegasse, por exemplo, no HIROSHIMA, MON AMOUR já teria um cuidado diferente a expor a história. É uma questão de relevância - de qualquer aspecto estético, técnico, fotográfico, diegético, etc. - atribuída ao objecto: se achar que se justifica distinguir alguma delas, faço-o. Caso contrário, parece-me que a prática se opõe ao objectivo da crítica.
Depois há outra coisa: custa-me (para não dizer que odeio) ler críticas pensadas numa formatação semelhante à minha. Sempre me julguei mais um comentador do que um crítico. E a questão nem passa tanto por escrever n parágrafos, como por tocar os pontos que devem ser tocados. Se forem precisos 20 para o fazer, então que seja; se não, é encher chouriços. É por esse motivo - entre tantos outros - que gosto imenso de ler o trabalho de gente como a Rita Morais de Carvalho, que escreve para o Cineclube FDUP e para o melancolia contemporânea (o seu blog pessoal), que consegue redigir uma imensidão de linhas sem nunca se repetir. E falo na Rita como podia falar no João Lameira, no Luís Mendonça, no Ricardo Vieira Lisboa, em ti [Jorge Teixeira], no Jorge Mourinha, no Samuel Andrade ou no Francisco Noronha - que escreveu para o À Pala de Walsh uma das melhores análises disponíveis em português do MARTHA, do R. W. Fassbinder -, entre tantos outros.
Mas trata-se, principalmente, de uma opção pessoal: se há quem prefira avaliar todos os filmes pela mesma bitola, nada contra. O importante é continuar a rever-me, fundamentalmente, como espectador no que escrevo. Quando deixar de o fazer, abandono definitivamente os meus comentários no que ao Cinema diz respeito. 

CL: Quais são para ti os campos da realização em todo o processo fílmico?

AF: Primeiro há que distrinçar entre dois conceitos que, misturando-se muitas vezes, tendem a confundir-se em demasia: os de realizador e autor. Porque nem sempre é o realizador que pare o filme. E temos os casos do Val Lewton na RKO dos anos 40 e o Roger Corman na Hammer como exemplos cabais da ideia; ou o Paul Schrader, que é tão criador do TAXI DRIVER (e do RAGING BULL, já agora) como o Scorsese.
Sempre mantive a ideia romântica de que a obra é filha do autor. O autor sofre por ela, cria-a do vazio, dá-lhe luz. Nesses casos, o campo da realização será, obviamente, maior: mais do que a mera coordenação, há a orientação da equipa para a visão que se pretende alcançar. O Herzog é perito nisso: aquela mão férrea faz maravilhas quanto à perseguição do seu objectivo enquanto autor. Para o tarefeiro, não passa de um trabalho: chega, pica o ponto, desempenha a tarefa para a qual foi contratado, entrega o produto e segue com a sua vida. Se o campo continua a ser o da coordenação e o da concretização de determinada visão artística (que pode muito bem nem ser a sua), reduz-se mais ao que consta do seu contrato. Gosto de dizer que o autor é mecanismo e o realizador-tarefeiro engrenagem do estúdio.
Convém é distinguir entre maus autores e tarefeiros capazes. A malta dos Cahiers insistia que o pior filme de um autor seria sempre melhor do que o mais capaz de um tarefeiro. Nunca me revi nessa opinião. Até porque há tarefeiros que entregam com muita qualidade: casos, por exemplo, do Danny Boyle (que vai acertando, não obstante alguns tiros falhados), do Marc Forster e do Ang Lee.

CL: A música, ou a banda sonora, é um dos componentes de um filme. Como analisas a sua importância e a sua capacidade de indução na sétima arte em geral?

AF: A música, o próprio som, é uma das áreas a necessitar urgentemente de maior exploração e desenvolvimento crítico no Cinema. Porque é das que mais contribui para o objecto-filme e das que mais influenciam o espectador no seu relacionamento com a obra. Não admira, pois, que tantos realizadores se tenham dedicado tão intensamente a ela: o Carpenter, nas suas bandas sonoras, o Harmony Korine, nos seus raccords audio-visuais alimentados a ácidos, o Tarantino, nos seus anacronismos sonoros.
É daí que se parte para uma série de questões da maior relevância. Pegando no ruído ominoso do Carpenter, será o som diegético mais importante que o não-diegético? Fará assim tanta diferença ao espectador ouvir meia-dúzia de violinos ou meia-dúzia de passos em soalho envelhecido? E podemos extrapolar para a voz-off: o seu uso justifica-se? A Chantal Akerman, uma das senhoras Cinema, parece ter decidido a dúvida a seu favor. O JE, TU, IL, ELLE prova que a voz-off pode funcionar, reunidas as condições certas. Mesmo que haja centenas de realizadores que, desde aí, tenham falhado escandalosamente na sua aplicação.
Ou podemos tocar nos raccords do Korine. Se a lógica videoclip incomoda tão bom crítico, porque é que o Korine parece fazê-la resultar no seu SPRING BREAKERS? Eu tenho para mim que é por tratar-se de um acto terrorista, um processo de desmontagem. Ali não há filme, há Cinema puro e duro. Nos outros é precisamente o contrário: há um filme, porque é um objecto do audio-visual, mas não há Cinema, por nunca ter havido intenção de usar o meio como meio, mas antes como veículo de um outro (a televisão musical). E nem é tanto uma questão geracional como filosófica, na abordagem à Arte. Da mesma maneira, o anacronismo do Tarantino tanto resulta como falha rotundamente na imersão do espectador no ambiente. No INGLOURIOUS BASTERDS temos a MELÁNIE LAURENT a preparar-se para a vindicta ao som da Cat People do Bowie, e o efeito é máximo; no DJANGO UNCHAINED não senti o mesmo - o rap não me induziu tanto na brutalidade recriada como aquele belo plano do algodão manchado com sangue.
Há uns tempos ouvi um concerto dos Nurse With a Wound e senti-me num filme de terror. Isso só me prova que o som, por si só, tem a capacidade de criar na audiência uma "imagem" projectada. O João César Monteiro conseguiu semelhante com o seu BRANCA DE NEVE. Não há ali nada, senão o ruído. Mas - e voltando a um dos pontos que já referi - tem-se Cinema, pelo simples facto de dar-se a ver algo que, efectivamente, não está lá.

CL: A televisão é um princípio, meio ou fim para o cinema? Em que sentido a mesma influencia ou é influenciada pela sétima arte?

AF: Não sei se se deva relacionar tão estreitamente os dois meios. Nunca tive a televisão como um princípio, meio ou fim do Cinema. Sempre considerei haver a televisão, o Cinema e, num plano comum aos dois, o Cinema que a televisão transmite. Há, para começar, uma diferença enorme de tamanho entre os dois meios. E não me refiro apenas ao da tela: o Cinema permite uma imersão n vezes maior no filme. Não há maior prazer para mim do que estar sentado duas horas no escuro, sem preocupações, a ver o que é projectado. Em casa tens não-sei-quantas distracções: o telemóvel que não pára de tocar, as outras pessoas, o teu cão que quer ir à rua, os vizinhos que não param de fazer barulho, o que quer que seja.
Nesse sentido, a internet veio diminuir ainda mais o Cinema. Tu agora podes ver um filme praticamente em qualquer lugar. O Cinema, mesmo que seja pensado sobretudo para esse meio - e já desconsiderando para o efeito os telefilmes - deixou de ter esse lado social de te sentares numa sala escura com mais vinte ou trinta pessoas. A cinefilia passou a ser ainda mais onanista: querendo, metes-te a ver três ou quatro filmes de rajada na solidão do teu quarto. A interacções entre o público tornou-se mínima. É por isso que gosto tanto de cobrir festivais e ciclos: sendo o filme bom ou mau, estás rodeado de pessoas com quem podes interagir. Se o Cinema tem para mim a função de escape, tem também a de nos ligar ao Mundo, o da tela e o de fora dela.
Parece-me é incontornável que a televisão acabe, eventualmente, com o Cinema nos moldes em que o conhecemos. É impossível, do ponto de vista do filme para Cinema, competir com a economia inerente a esse meio: com os anúncios nos intervalos, com a quantidade massiva de público que alcança, até com a oportunidade de desenvolver uma narrativa ao longo de vários episódios. Desconfio que seja tentador para uma grande parte dos realizadores e argumentistas a capacidade de trabalhar mais a fundo o material. Gente como o Spielberg e o Fincher já se aperceberam disso e passaram a desenvolver, em simultâneo, Cinema e televisão. É apenas uma questão de tempo e de aperfeiçoar a fórmula.
Nessa perspectiva, teria de escolher a televisão como o fim para e do Cinema. Até porque, em tendência, o pequeno ecrã reduz o Cinema a um par ou trio de géneros. E fá-lo porque é para filmes que se encaixem nesse formato que consegue a grande fatia da sua audiência. Passassem Antonioni ou Fassbinder e ficavam às moscas: a malta mudava logo de canal para a trash tv que os concorrentes, aproveitando, escolhessem emitir. Vem também daí a importância de um serviço público de televisão que proteja essa minoria cinéfila da cinefagia sem critério dos Outros. E talvez seja também aí que reside o futuro dos cineclubes e das salas de Cinema, nas obras de autor que, de uma forma ou outra, continuam a explorar as potencialidades da Sétima Arte. Extinga-se uma ou as duas dessas condições e o Cinema morre; ficamos apenas com filmes e a sua carcaça.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Manoel de Oliveira: «O cinema só trata daquilo que existe, não daquilo que poderia existir. Mesmo quando mostra fantasia, o cinema agarra-se a coisas concretas. O realizador não é criador, é criatura.»

AF: Nunca soube se concordava ou não com essa afirmação do Diácono. No fundo, trata-se de uma ideia muito relacionada com a filosofia com que se entende o Cinema, com o aceitar-se, ou não, o hiperrealismo putativo da sétima arte. A problemática é semelhante na música: o compositor "limita-se" a combinar os sons que já existem; mas ao fazê-lo cria, à partida, algo novo. Extrapolando para o Cinema, o autor combina os elementos existentes - as técnicas, a narrativa, etc. - na criação de um produto até aí inexistente.
Mais correcto, para mim, seria considerar o Cinema concreto nos meios de que dispõe e inovador no resultado que produz. Em relação aos filmes tout court a minha opinião já é diferente. Quem me lê já terá certamente percebido que escrevo a palavra [Cinema] sempre com maiúscula. Faço-o porque gosto de distinguir a Arte, inocente e inovadora, do objecto comercial, que, salvo raras excepções - e o Sam Mendes e o Ang Lee são exemplos dessas excepções -, se restringe a reaproveitar elementos já estabelecidos por outros. A citação do Oliveira fará mais sentido para um blockbuster do que, por exemplo, para uma obra do Edgar Pêra ou do César Monteiro que, pegando no que já conhecem, transformam-no em algo novo.
Será esse o objectivo-último do Cinema experimental: criar, na exploração das potencialidades do meio, "Cinema novo"? A fundação é comum à das Vagas, quebrar com a instituição artística em vigor, com o Clássico. Ora, o Clássico é um conceito extremamente plástico e deformável, varia de época para época. No MIDNIGHT IN PARIS, do Woody Allen, diz-se que nenhuma época se atribui a si mesma o epíteto de "dourada"; a tarefa produz-se sempre em retrospectiva. O Oliveira, nesse prisma, é um realizador Clássico. Pode não ser considerado Clássico pelos padrões dos anos 70 ou 80 - décadas em que produziu alguns dos seus trabalhos mais inovadores -, mas é-o pelos dos novos anos 00.
A Fantasia - o Fantástico enquanto género - é uma extensão desse experimentalismo. Cria-se ali, em função do que já se conhece, algo ainda por conhecer. O del Toro é exímio nesse aspecto: o EL LABERINTO DEL FAUNO, dentre todas as suas obras, é inovador, alicerçando-se nos contos-de-fadas. E quem fala no del Toro fala em muitos outros. No Carpenter, por exemplo, que marcou décadas de Terror pela inovação que emprega nas suas fitas. Os que não se dedicam a essa tarefa de criação reaproveitam os resultados - agora elementos conhecidos - de quem o fez. O filme de A ou B passa a fórmula de C. Daqui a vinte anos talvez haja quem considere o del Toro ou o Carpenter realizador "Clássicos". E a malta que nunca viu nenhum filme dos dois e decida pegar numa câmara para fazer concretizar a sua própria visão seja a inovadora.
Vai-se ao Dreyer, que disse nunca ter visto Cinema até ter começado ele próprio a fazê-lo, e percebe-se o problema. O homem, naqueles enquadramentos miraculosos, criou algo de novo. E não foi por isso que deixou de utilizar como meio o que já conhecia (no seu caso, a imagem do Mundo e a narrativa). Não creio que seja necessário manter-se uma visão hiperrealista do Cinema para o compreender. Prefiro acreditar que basta tê-lo como algo maior do que a vida.