6.12.13

À Boleia (13)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Samuel Andrade, autor do blogue Keyzer Soze's Place.
Obrigado, Samuel, pela colaboração.

Caminho Largo: O que se deve para ti privilegiar mais num filme?

Samuel Andrade: A experiência proporcionada por um filme, nomeadamente a nível sensorial e emocional, demonstrando, nesse processo, a capacidade de se distanciar das outras expressões artísticas. Pelo uso que faz das várias disciplinas inerentes ao Cinema (fotografia, cenografia, música, etc.), valorizo sempre o filme que expõe situações, temáticas e estados de espírito da forma mais cinematográfica possível: um movimento de câmara não “casual”, um enquadramento pleno de simbolismo e significação, uma determinada escolha cromática, o efeito sonoro gerado com a intenção de não ser apenas um elemento de audição, ou uma reunião inusitada de motivos narrativos.

CL: É habitual falar-se do "visual" do filme, da sua componente estética e formal em comparação com o argumento. Na tua perspectiva e interpretação, onde encaixa aqui a realização? É negligenciada ou insere-se na tal "aparência" do filme? Identificas-te com esta posição?

SA: Mais do que a componente estética e formal de um determinado filme, identifico-me sobretudo com a noção da realização enquanto veículo para a construção autoral por parte de um realizador. Nestes casos, a realização é, indiscutivelmente, o elo mais forte de um filme e, consequentemente, da análise à carreira de um cineasta.
Por outro lado, a realização só se apresenta negligenciada na composição formal do filme quando é assumida por um profissional pouco interessado em imprimir a sua marca (um “tarefeiro”, segundo a gíria da indústria).

CL: A versatilidade e a abrangência são mais ou menos importantes que um vincado carácter autoral de um cineasta?

SA: A versatilidade e a abrangência podem ser o carácter autoral de um cineasta, e não faltam exemplos disso. Só para citar alguns, recordo-me dos casos de Stanley Kubrick, Alain Resnais, Steven Spielberg, Ridley Scott, Chan-wook Park ou John Ford, autores que foram capazes de expressar visões, inquietações e temáticas por intermédio de diversos registos e géneros.
Todavia, considero que a verve de um autor nunca se poderá diluir numa polivalência desorganizada, incorrendo assim no risco de perder os factores que elevam um realizador àquele estatuto.

CL: A adopção por novas tecnologias e por novas ferramentas por parte do cinema deve ser imediata e permanente? Ao longo da sua história tem sido sempre benéfica? Porquê?

SA: Eis uma autêntica one million dollar question.
É do conhecimento de muitos a minha perspectiva algo conservadora relativamente às novas tecnologias na Sétima Arte, com a defesa da manutenção da película de 35mm, enquanto ferramenta de produção, exibição e conservação, em plano de destaque. No entanto, admito que o digital tem permitido, com elevado grau de eficácia, uma considerável “democratização” do Cinema, nomeadamente na forma como possibilita que mais jovens talentos possam filmar com a frequência e acessibilidade económica desejadas ou na oferta alargada de títulos disponíveis (DVD, Blu-ray, stream, etc.) nesse formato.
Além disso, é-me impossível negar o impacto indiscutivelmente positivo que determinados desenvolvimentos tecnológicos, como o surgimento do sonoro ou a invenção da Steadicam, tiveram para o modo como apreciamos um filme. Mas darei sempre o meu aval à obra ou ao cineasta que privilegie uma abordagem mais “primitiva” – no sentido de mais próximo das suas origens – e ponderada ao Cinema: que encare a película como o suporte na qual a Sétima Arte foi criada e pensada para ser exibida, que não encontre nos efeitos visuais a resposta para qualquer necessidade de production values, e que não transforme a experiência de ver um filme em “atracção de feira” (vulgo 3D).

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Stanley Kubrick: "Um filme é - ou deveria ser - mais como a música do que como a ficção. Deve ser uma progressão de estados de espírito e sentimentos."

SA: Tal como afirmei na minha primeira resposta a este «À Boleia», é a experiência que determina o acto de ver Cinema. Para qualquer cinéfilo, seja ele mais ou menos experiente e conhecedor, revela-se sempre inesquecível aquele filme visionado numa determinada altura da sua vida, que foi capaz de sacudir o seu âmago, de apaziguar qualquer dilema pessoal ou de suscitar sentimentos nunca antes experienciados. É esse o poder, de cariz sensorial e emocional, que torna o Cinema na arte peculiar que conhecemos.

P.S.: aposto que a referência a Kubrick, no contexto deste convite (que muito agradeço), foi tudo menos casual. Parabéns, Jorge, és um blogger atento.

3 comentários:

  1. Acima de tudo, reitero o meu agradecimento ao Jorge pelo convite para esta excelente iniciativa — mesmo em "ausência sabática" da blogosfera, não poderia recusar o repto.

    A todos os leitores, aqui fico ao dispor das vossas reacções e/ou discordâncias.

    Cumps cinéfilos.

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  2. Excelentes perguntas e excelentes respostas.
    Mais uma vez, aqui está a prova de que tu, Jorge, fazes muito bem o "trabalho de casa" quando nos convidas para iniciativas. :) Gosto de ver como as perguntas são realmente direccionadas para quem vai responder.

    Mais uma vez, parabéns pela iniciativa.

    Cumprimentos cinéfilos.

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  3. SAM, Obrigado, mais uma vez, pela colaboração e pela disponibilidade que sempre demonstras em apoiar e divulgar o que se faz (e o que se pensa) nesta blogosfera.

    INÊS MOREIRA SANTOS, Sim, faço o possível para que as perguntas e todo o tom da entrevista seja direccionada para o convidado, para, no fundo, potenciar mais e melhor as palavras e o entendimento delas mesmas para os leitores. Obrigado.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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