28.12.12

Torneio Interblogues: Estágio

A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty: 2ª Edição


O Caminho Largo aderiu ao convite, e ao Torneio Interblogues, organizado pelo blogue CINEdrio, no âmbito da 2ª Edição da iniciativa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty, e formou a sua equipa, o seu onze ideal de cineastas representativo da "política desportiva" mais (omni)presente neste espaço. O seu campo de autores, por assim dizer, ainda que limitado, uma vez que só alinham "jogadores" (realizadores) que estejam no activo e que, na prática, se complementem entre si.

Entretanto, os atletas convocados já se encontram em estágio, e a treinar, sendo que a competição entre as várias equipas (blogues) começará dentro em breve, após o sorteio dos quartos-de-final. Assim que estiverem ditados e organizados os jogos, serão publicados aqui, oportunamente, o adversário e a data do primeiro jogo (período da votação) relativos à equipa deste blogue e de todos os outros concorrentes em competição, bem como das fases seguintes do torneio até à final. Para mais informações, e para a apresentação geral de todas as equipas, basta seguir e explorar o blogue CINEdrio ou mais especificamente aqui.

Sem mais demoras, o Caminho Largo FC é então constituído pelos titulares que estão na imagem abaixo, num esquema táctico em 4x3x3. As devidas justificações para cada escolha ou jogador na respectiva posição, e as estratégias e relações entre eles, expõem-se em seguida.

Guarda-redes: Hayao Miyazaki - Sereno, tranquilo, de larga amplitude e análise de jogo, com boa antecipação e sentido posicional, que se transcende por vezes, como que voando e anulando um golo quase certo. Gosta de lançar, em passes longos, contra-ataques improváveis para a maioria, mas concebíveis para ele e para David Lynch, seu parceiro nestas jogadas (aventuras). Algo isolado do resto do grupo, vive num mundo à parte, por assim dizer, no entanto, e na altura certa, o japonês tem sempre uma mensagem de força e de reserva para os companheiros, motivando-os, e por isso assumindo um papel importante na equipa - espécie de porto seguro, onde recorrer, nos bons e maus momentos.

Defesa esquerdo (lateral): Kar Wai Wong - De uma visão e abrangência únicas, capaz de defender (e segurar) tudo e todos como de se projectar para a frente com uma improvisação e provocação admiráveis. Daí que se adapte a extremo, explorando a ala esquerda com bastante dinamismo e elegância até, ao ponto de disputar, em certas abordagens, o lugar com Tarantino (titular da posição). Mas é na gestão de todo o corredor que o chinês se sente mais à vontade. É com a sua capacidade em ler o adversário sem bola, interrompendo ataques e contra-ataques, e na simultânea recuperação de investidas mais ofensivas, que está o seu grande valor.

Defesa central (esquerdo): David Cronenberg - Escasso em recursos, mas eficaz, inteligente, duro (física e psicologicamente) e regular. Tem uma personalidade distinta em campo, impondo respeito aos adversários, que por norma não passam pelo canadiano. Em último caso, descarrega mesmo um choque prévio corpo a corpo. O seu ar aparente de poucos amigos, dá-lhe a autoridade e o domínio emocional tão úteis à defesa e em certos momentos de fraqueza da equipa, pelo que não será de estranhar o seu carácter mais distante e frio nas fases opostas de festejo. Sendo o patrão da defesa, raramente é relegado ao banco, mesmo em jogos de relativa importância, tal a sua solidez, regularidade e capacidade física (nunca se lesionou em toda a sua, já longa, carreira).

Defesa central (direito): Roman Polanski - Metódico, certo, detém pouco espaço de manobra mas é exemplar e limpo nos lances. Geralmente contido, pautado, mas aqui e ali explosivo, sobretudo na raça e determinação que executa os cortes.  Possuidor de um jogo e de uma maneira de estar em campo em muito semelhante à do seu ídolo, à sua influência (assumida) - o astro lendário Alfred Hitchcock - no calculismo e disciplina táctica. Complementa-se muito bem com Cronenberg, dobrando o adversário quando o companheiro não pode, formando em conjunto uma terrível e assustadora dupla de centrais. O polaco ainda sobe com frequência à grande área inimiga, especialmente em lances de bola parada onde faz valer a sua estratégia e o seu bom jogo aéreo (mental).

Defesa direito (lateral): Yimou Zhang - Com os seus altos e baixos, é jogador para se concentrar tanto no detalhe (num adversário), como em todo o campo, abrindo o corredor (e o ângulo) só para si. Exuberante e extrovertido dentro e fora do espectáculo, não se encontra de momento na sua melhor forma, muito embora a qualidade e a criatividade do chinês estejam lá, facto que por si só justifica alguns rasgos de perfeita execução e ilusão de que os espectadores são testemunhas. Tem ainda um forte sentido de camaradagem, sendo que tem uma amizade particular com o compatriota Kar Wai, seu colega de treino desde os juniores da selecção chinesa.

Médio defensivo (esquerdo): Werner Herzog - Poderoso, autêntico, sem meias medidas. Um trabalhador nato, que faz um pouco de tudo, explorando o terreno como ninguém. Encara cada partida como a última, debatendo-se incessantemente em verdadeiras batalhas campais (naturais e humanas). Transmite por isso segurança à defesa e confiança ao treinador, a provar está o facto de o alemão ser o jogador que habitualmente mais quilómetros contabiliza e mais jogos faz durante uma época inteira. É ainda, o atleta mais polivalente de todos os titulares, aquele que, prescindindo do seu posto, preenche a vaga ou a lacuna temporária antes de substituições forçadas (com menos um no onze, recua muitas vezes, fazendo de terceiro central ou inclusive de lateral), e portanto, provavelmente o peão mais útil na estratégia da equipa.

Médio defensivo (direito): Clint Eastwood - Autoritário, concentrado, com tempo e noção de espaço. Clássico no estilo, passa despercebido na maior parte dos encontros (há até quem o chame "o homem sem nome"), mas é peça fulcral para a estabilidade do esquema táctico adoptado. Segura a retaguarda ao mesmo tempo que prepara e lança a construção de jogo. Tem pouquíssimas falhas. A regularidade, a força que transmite e o facto de ser o mais antigo jogador do plantel, dão, há muito, o título de capitão de equipa ao americano. Doutra geração que a maioria dos seus companheiros, confere ao grupo, tanto em campo como no balneário, a tranquilidade necessária, acima de tudo, na gestão de resultados. Senhor ainda de um poderoso remate, reflectido em exímios livres directos que são de uma precisão e versatilidade por vezes algo surpreendentes e refrescantes num jogador em que a idade tem sido sinónimo de qualidade.

Médio centro (n.º 10): Martin Scorsese - Notável, criativo, genial no passe e na visão periférica. Organizador e manipulador de todo o jogo. Produto de uma geração de ouro (à época de novos talentos), é acima de tudo, um executante das estratégias planeadas (e treinadas) e inventor, não raras vezes, de soluções urgentes. Impecável tacticamente, o mestre, tal como é chamado, preenche cada metro e cada minuto com o seu talento e magia na condução da bola, ora lenta e construtiva, ora rápida e fracturante. O n.º 10 por excelência, que balança entre a experiência adquirida e a variedade e técnica alcançadas. Detentor ainda de mudanças de velocidade e compensação a todos os níveis espantosas. Daí que o génio e colosso americano mereça o orgulho do treinador, o respeito dos colegas e a admiração dos adeptos.

Avançado esquerdo (extremo): Quentin Tarantino - Volátil, ousado, irreverente, brilhante com a bola nos pés, seja a assistir, seja a fintar e a brincar com o adversário no um para um. Nem sempre defende e é demasiado individualista, mas acaba por equilibrar com a energia e aceleração dos seus arranques até à linha de fundo - que o ponta-de-lança agradece. De palavra (e insultos) fácil, é sobretudo com a incerteza e a auto-estima que joga e deslumbra o público. Daqueles jogadores que levantam um estádio, quebram mecânicas de treino e reciclam jogadas improváveis. É americano, mas geralmente possui um estilo de jogo "à italiana" - muitos o consideram mesmo um descendente do antigo craque Sergio Leone - alternando entre jogadas "de perto", no passe e na finta, e jogadas de longo alcance, no cruzamento e na desmarcação. Inversamente, também se desmarca, principalmente nas constantes combinações que faz com Scorsese da esquerda para o meio, concretizando desse modo muitos contra-ataques.

Avançado direito (extremo): Emir Kusturica - Ágil, mutável, imprevisível, atrevido. Se Tarantino brinca, Kusturica por vezes humilha os adversários com os seus dribles mirabolosos. Com inspiração e em arrancadas individuais, o sérvio resolve encontros sozinho, sendo que é mesmo a arma secreta para o treinador. Uma espécie de promessa em cada jogo e em cada época. Daí que fique algumas vezes no banco, caso seja necessário uma dinâmica e criatividade extras numa segunda parte ou quando o resultado assim o exigir. De todos os jogadores, é o mais brincalhão e a alegria do balneário. É o que lida melhor com as entrevistas e o que invariavelmente mais interage com os adeptos, inclusive da equipa adversária (com provocação e ironia).

Ponta-de-lança: David Lynch - Famosa estrela americana. É a mais recente e mais cara aquisição do plantel. De extrema habilidade, na recepção e domínio de bola (mesmo na confusão total), é um jogador absolutamente soberano dentro da sua área de influência. Com a mesma facilidade, tanto marca de cabeça como com o pé. Revela-se, por isso e constantemente, uma surpresa e, jogando muito de costas para a baliza, rompe a defesa contrária inúmeras vezes, finalizando sempre de maneira diferente com o seu toque de bola e cunho pessoal. É, contudo, ainda mais mortífero na marcação de grandes penalidades - segundo alguns colegas, em toda a sua carreira falhou apenas dois - e isolado frente a frente com o guarda-redes, em que raramente falha. Grande ponta-de-lança, que é um regalo e uma certeza para qualquer amante de futebol.

Treinador: Yasujirô Ozu - De perfil calmo, atento, quase estático por vezes, é um treinador que sabe esperar e que tem perfeita noção da abordagem e enquadramento que pretende, perante o contexto e o adversário que enfrenta. Normalmente, tem tudo pensado, a cadência de passe, as substituições, as marcações, os planos b e c, os contra-tempos e o anti-jogo, digamos. Analisa e prepara meticulosamente cada encontro, tendo invariavelmente em campo uma postura séria e consciente, olhando e avaliando o encaixe das duas equipas e respectivas tácticas sempre num plano mais térreo, mais real - no fundo, o seu, o de treinador (que não abdica, em qualquer circunstância), e portanto, nunca visões de cima, de bancada. Antiga estrela asiática que tem igualmente tido bastante sucesso na carreira de treinador - a prova são os êxitos dos últimos anos com este conjunto de titulares, que o próprio construiu.

27.12.12

Citações (5)

Lost Highway (1997), David Lynch


EdDo you own a video camera?
Renee MadisonNo. Fred hates them.
Fred MadisonI like to remember things my own way.
EdWhat do you mean by that?
Fred MadisonHow I remembered them. Not necessarily the way they happened.

26.12.12

Ordet (1955)

A Palavra, Carl Theodor Dreyer


Existem momentos em que questionamos as nossas crenças e os nossos valores, cravados profundamente nos degraus da nossa vivência, esses, que com o passar do tempo, se estabelecem e se re-constroem a partir desse estado de viragem e de ruptura, revelando, então, não só a sua importância, mas também o seu carácter fracturante e, não raras vezes, decisivo na nossa vida. Ordet se não é seguramente um desses casos logo à partida, virá a sê-lo mais tarde, sem qualquer dúvida - um filme que nos transporta para o divino, para o impossível, no fundo, para outra dimensão, tão próxima e tão distante de nós simultaneamente.

A Palavra, no seu significado traduzido, remete-nos narrativamente, e na sua essência, para o diálogo, para a cena e contra-cena, numa espécie de longa dança sincronizada e mimetizada (Dreyer influenciava e limitava cada gesto dos actores exaustivamente) numa mise-en-scène atmosférica e teatralizada, como se estivéssemos a assistir a algo já profetizado e descrito pormenorizadamente. Cada acção, tendo o filme apenas uma mão cheia delas, tem um peso enorme para a desenvoltura do enredo e para as próprias palavras que se seguem. Tanto mais que a interacção e o preenchimento dos espaços pelos protagonistas é feita pautada e ritmicamente (e a seu tempo), conforme o momento assim o determine, ou o autor assim o deseje (mais uma vez, o dinamarquês era exímio e um tanto ou quanto paranóico nos detalhes e na força que pretendia em cada acto).


Influência extrema do cinema mudo e do expressionismo alemão, em que cada gesto ou palavra pesavam toneladas, esta obra (porque de obra se trata mesmo) sempre se registou fora de correntes, sendo que sobrevive até estes dias envolta numa aura muito particular, actual e estranhamente intemporal. Trata-se, para além de todo o seu formalismo, de um manancial de explanações, sugestões e metáforas, tantas quanto quisermos explorar (ou acreditar). Ás tantas tudo se resume às mais velhas questões - o que existirá para além da vida? ou entre a vida e a morte? será a fé uma resposta? ou um caminho de aceitação? existirá, por mais recôndita que seja, a possibilidade de milagres? Tamanhas são as interrogações, e no fim, estamos a falar de assuntos transversais da nossa cultura, que têm percorrido gerações e gerações, sempre no balanço entre a dúvida e a confirmação do propósito da fé humana.

Os cenários espelhando o conteúdo, dentro e fora de portas, são autênticos quadros carregados de simbolismo e também por isso quase deduzidos com o trabalho à priori alcançado, como se a cena seguinte dependesse da cena anterior, numa cadência ainda assim imprevisível e angustiante (veja-se o caso simbólico de Johannes que se julga Jesus Cristo, facto que por si só aumenta a componente sombria, premonitória e fantasmagórica de que o filme é possuidor).


Toda a construção dos planos, no seu mais puro e belo enquadramento, é estupenda, digna do tema basilar, da transcendentalidade presente em cada acção, em cada significado ou em cada repercussão sensitiva. A mística e a beleza da fotografia a preto e branco, fria e cinzenta, nos já citados quadros (e sobretudo em exteriores - o campo e o céu principalmente), concretiza as ideias, mais especificamente através dos contrastes e da luz, moldando e caracterizando todos os movimentos e todas as nuances argumentativas que vislumbramos. Daí que as formas, nesse jogo de "luzes", surjam minimizadas, revelando-se apenas quando necessárias, e projectando o espaço eficazmente. Aliás Dreyer era um perfeccionista, capaz de sujeitar tudo e todos à sua vontade autoral. Esse facto é notório na união que existe entre pessoas e ambientes ou entre o que se diz e o que se faz, digamos, nunca se dando propriamente um confronto, antes uma sincronia e um constante respeito mútuo entre as várias partes. A contemplação cede ao diálogo, assim como este cede à sonoridade quando pertinente. Esta que é, por sua vez, muito pouco utilizada, e nunca, por isso, manuseada para influenciar, mas sim para enaltecer um ou outro momento-chave.

Se de quadro em quadro o cineasta se revela primoroso, o que dizer das transições e da solenidade da presença da câmera e das suas subtis rotações e aproximações?! Por vezes, mesclando o enquadramento com o movimento, nos seus famosos e magníficos planos-sequência. Evidenciando mais o invisível do que o visível, a condução da câmera se dá pelo seu próprio pé, ora acompanhando o que desejamos, ora reflectindo o que ansiamos (na sua maioria pelas expressões faciais dos personagens). No geral, estamos na presença de uma estética inconfundível, lenta e demorada é certo, mas estruturalmente inquebrável e muito bem assente e ciente dos seus alicerces.

Forte influência para o realizador sueco Ingmar Bergman, por exemplo. Dreyer, no entanto e numa época anterior, foi pouco influenciado ao longo da sua carreira (abstinha-se inclusive de assistir a filmes durante anos e anos), o que só aumenta o mérito e a originalidade do património que nos deixou. Carregado, em toda a sua plenitude, de um humanismo do mais puro e verdadeiro que possa haver. Sem grandes adornos, restringia-se habitualmente à simplicidade e à virtuosidade que daí advém.


Ordet, na sua idealização, concretização e interpretação exprime muito, talvez em demasia perante o que os planos, e em particular a cena final, nos indiciam. O filme poder-se-ia condensar em todo um acto, no fazer-nos acreditar que determinada ilusão (mesmo no Cinema em que tudo é possível, mas não facilmente interiorizável) torna-se verosímil, em última instância através da suspensão da vida, só alcançada por meio da imagem e da palavra.

As referências são, pois, inúmeras, do próprio cinema em si até à religião, liberdade, lealdade e laços familiares. Toldadas como um espírito à deriva, é quando menos se espera que se manifestam, rompendo pré-disposições ou (pre)conceitos estabelecidos de ante-mão, à medida que o desenvolvimento e suposta previsão do argumento avança, qual Ser, sem rumo e sem destino. Sem sabermos bem como, perante esta misteriosidade e contemplação exageradamente simples e calma, vamo-nos embrenhando na história e nos personagens (sobretudos estes), e sem admiração, no culminar de algo que se avizinha, ao mesmo tempo, estranho e inevitável. Das melhores obras que a sétima arte já nos ofereceu.


Jorge Teixeira
classificação: 10/10

24.12.12

1 Tema, 3 Filmes (3)

A Família

You Can't Take It with You (1938)
Não o Levarás Contigo, Frank Capra

How Green Was My Valley (1941)
O Vale Era Verde, John Ford

It's a Wonderful Life (1946)
Do Céu Caiu Uma Estrela, Frank Capra

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

20.12.12

TCN Blog Awards 2012: Vencedores



Foi no passado sábado que se anunciaram os vencedores, numa cerimónia que teve tanto de animada como de séria, facto que se tem afirmado, e em crescendo, ano após ano. O Caminho Largo não ganhou nas duas categorias para o qual estava nomeado, no entanto todos os prémios, sem excepção, ficaram muito bem entregues, seja pela qualidade evidente dos espaços vencedores, seja pela sua inestimável fidelidade em dar a ler regularmente opiniões e reflexões sobre o cinema. A lista dos vencedores pode ser conferida aqui.

Resta-nos desejar os mais sinceros parabéns a todos os premiados, como a toda a organização deste evento a cargo do blogue Cinema Notebook e da revista Take - cinema magazine. Que os TCN Blog Awards respirem sáude por muitos mais anos.

Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

10.12.12

Cenas (1)

Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo (1966), Sergio Leone


Um das melhores cenas que já assisti – estratégica e exímia no detalhe e na tensão exteriorizada. A cena diz respeito ao duelo final do filme The Good, The Bad and the Ugly (título inglês), numa típica conclusão da fábula, mas atípica na forma como brinca e explora o ritmo narrativo e musical da mesma. O modo como alterna momentos de silêncio com a música 'lá em cima', como balança do close-up à panorâmica, ou como divide o espaço e o tempo entre os três protagonistas, é absolutamente divinal. É tanto capaz de nos transportar à exaltação e à catarse, quanto à concentração e ao desfruto de pormenores de um filme todo ele genial. O contributo de Ennio Morricone é decisivo para o bailado e para a sinfonia que desfila diante de nós numa clara simbiose entre o que vemos e o que ouvimos, entre música e imagem. Mas a própria edição de som (até no silêncio total) é deliciosa, definidora também da tensão e da construção deste clímax.

Sergio Leone é o génio por detrás das câmaras, é o artífice que manipula os estereótipos (o Bom, o Mau e o Vilão nem sempre reflectem as acções dos homónimos personagens, havendo como que uma mistura constante entre eles, bem visível neste caso através das expressões faciais) e as dinâmicas imprimidas no ritmo e na edificação, passo a passo, da montagem de toda a cena.

Pela antecipação, pelo trabalho, pela substância e por tamanha qualidade em diversos departamentos, tenho poucas dúvidas de que este é um dos climaxes mais bem planeados e executados de sempre. Daqueles momentos onde a arte se confunde com o entretenimento, ou melhor, onde a arte é assimilada por inteiro e por todos.

Texto originalmente publicado no ciclo 'Western Spaghetti' do blogue My One Thousand Movies

8.12.12

Em resposta ao artigo escrito por Mourinha "às criancinhas"


Saiu no suplemento Ípsilon, do jornal Público de 30 de Novembro passado, um texto que não pode deixar de suscitar uma reacção. Com o título "A evolução da alternativa ao academismo contada às criancinhas", esse artigo de opinião versa, em tom de escárnio, sobre a situação presente da revista francesa Cahiers du Cinéma, contraposta aos anos históricos da sua afirmação no mundo. O seu redactor, o crítico de cinema Jorge Mourinha, "conta às criancinhas" a história da revista e o seu impacto nos modos de ver, dar a ver e fazer Cinema. Diz, a certa altura, que a política de autores tem vindo a "impor globalmente" uma "oposição comummente aceite entre 'cinema comercial' e 'cinema de arte' ou 'cinema de autor'". Percebemos que Mourinha sabe que os Cahiers procuraram precisamente “confundir” essas etiquetas redutoras entre o que é comercial e o que é arte; que viram arte no comercial (caso de Hitchcock) e comercial na arte (caso dos autores "burgueses" da Tradição da Qualidade, que Truffaut denunciou como a tendência mais funesta do cinema francês). Contudo, não entendemos onde está a lógica em afirmar que o que corresponderia hoje a defender, como o fizeram na altura os críticos dos Cahiers, realizadores como Hawks e Hitchcock, seria "erguer a 'autor'" um cineasta como Christopher Nolan, "coisa que aos Cahiers hoje, entrincheirados no academismo que eles próprios criaram, nunca passaria pela cabeça."

De repente, Mourinha sonega toda a história que se segue à formulação da "política de autores": nada mais que a emancipação do Cinema a nível mundial. O que Mourinha propõe é olharmos para o cinema comercial como os críticos dos Cahiers souberam olhar no seu tempo, mas como se a dimensão autoral fosse indissociável da natureza comercial ou não do filme em análise. Os Cahiers não estabeleceram que TODO o cinema de autor tem de ser cinema comercial; disseram que o cinema de autor pode nascer de uma conjuntura económica e política adversa à liberdade artística do criador. Entre o "pode" e o "tem" cabe o mundo — claro que para Mourinha, como a última produção de Nolan é cinema de autor, coisa que este arruma só pelo facto de "dizer que assim é", então Nolan é o novo Hawks ou o novo Hitchcock e... Mourinha o novo Truffaut?

O que os críticos dos Cahiers fizeram foi — e voltamos a usar o termo "vitimizante" de Jorge Mourinha — "impor" a liberdade de se ver cinema muito para lá dos sistemas de gosto instalados — esses sim, foram as vítimas da sua crítica. Os Cahiers propuseram um "novo olhar" livre de preconceitos tal como não foi de modo algum imposto um novo preconceito que dita que todo o cinema comercial americano está destituído de dimensão autoral, ou então Spielberg não teria visto o seu "War of the Worlds" ser considerado pela revista "só" o oitavo melhor filme da primeira década do novo milénio... Ou M. Night Shyamalan não teria merecido a consagração que nunca teve — e algum dia terá? — no seu próprio país.

Mais à frente, o crítico do Público diz: "Muitos dos nomes que os Cahiers defendem na sua lista como cineastas livres fazem parte do academismo do cânone 'autorista', ao qual pertencem em alguns casos mais pela sua postura perante o cinema do que pelos filmes em si." Como pode a "postura sobre o cinema" não estar nos "filmes em si", ou melhor, onde foram os críticos dos Cahiers buscar essa postura que não nos filmes? Parece-nos evidente que Mourinha, por não tolerar, por exemplo, o cinema de Ferrara, sente-se no direito de tomar toda a linha editorial dos Cahiers por ortodoxa ou académica ou, no limite, "conformada" — um de nós também detestou o último Coppola, o outro não considera “Holy Motors” como merecedor de inclusão em Tops dos melhores do ano, mas vê-los na lista da Cahiers lembra-nos como é sempre possível um olhar diferente sobre o mesmo objecto...

Mourinha cita Bazin para dizer que "tudo é relativo", algo que o crítico do Público não põe em prática quando se mostra incapaz de: aceitar a diversidade de proveniências do Cinema, reconhecer o lugar que os Cahiers ocuparam e ainda procuram ocupar no desafio aos unanimismos e aos "gostos maioritários" e — detenhamo-nos, por fim, neste ponto — respeitar a diversidade de visões sobre um filme provenientes de fontes como os, segundo Mourinha, “blogues que multiplicam opiniões”.

Recordamos que a presente indignação ao artigo publicado pelo suplemento Ípsilon nasce na própria comunidade blogger cinéfila portuguesa, uma comunidade liberta de linhas editoriais que não a instituída pelo próprio blogger em prol de uma reflexão cinematográfica anti-consensual, inclusive geradora de alguns futuros profissionais do cinema português e que, em toda a sua natureza, pluralidade, virtudes e defeitos, revela-se um dos espaços mais férteis e inconformados no que toca ao debate sobre o passado, presente e futuro da Sétima Arte.

Signatários:

5.12.12

Entradas e Saídas (2)

The Bridges of Madison County (1995), Clint Eastwood


O tempo, uma vida, as paixões. Se por vezes encontramos conforto e motivações regular e periodicamente, outras há que o estímulo só surge duas ou três vezes em toda uma existência. Estímulo esse que, contudo, se poderá revelar esmagador, inesquecível e por isso imortal, tanto mais recompensador que meras pontualidades. É o caso deste The Bridges of Madison County, ou do seu par protagonista e respectiva história, tão curta e preenchida tal qual um atalho útil mas sem saída.

Um início calmo, típico, rotineiro, que estreme, balança e quase se vira a meio, na re-descoberta de viver e deixar-se viver, para no fim equilibrar-se (na tal tangente normal e angustiante), voltando assim à estabilidade e conformidade temporariamente deixadas.

2.12.12

5 Grandes Filmes de Ficção Científica (1)


Frankenstein (1931)
James Whale

Alien (1979)
Alien - O 8.º Passageiro, Ridley Scott

The Thing (1982)
Veio do Outro Mundo, John Carpenter

The Fly (1986)
A Mosca, David Cronenberg

Jurassic Park (1993)
Parque Jurássico, Steven Spielberg

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

29.11.12

Bandas Sonoras (3)

El Laberinto del Fauno (2006), Guillermo del Toro


Composição orquestrada por Javier Navarrete em mais uma parceria com Guillermo del Toro. Talvez uma das melhores bandas sonoras da última década, detentora de uma linearidade e densidade extasiantes. Em crescendo, a música como que escreve o texto, imprime o ritmo e conduz à imaginação, sempre nas proporções e tempo certos e, logo, em sintonia com o que assistimos. A simbiose perfeita entre o visual (real e imaginário) e o sonoro. No fim de contas, é sobretudo de ilusão e fantasia que se faz música, e é de música que a imaginação mais depende ou mais carece de forma a atrair o improvável.

27.11.12

Citações (4)

To Kill a Mockingbird (1962), Robert Mulligan


Atticus FinchIf you just learn a single trick, Scout, you'll get along a lot better with all kinds of folks. You never really understand a person until you consider things from his point of view... Until you climb inside of his skin and walk around in it.

25.11.12

1 Tema, 3 Filmes (2)

Racismo

The Birth of a Nation (1915)
O Nascimento de Uma Nação, D.W. Griffith

To Kill a Mockingbird (1962)
Na Sombra e no Silêncio, Robert Mulligan

The Color Purple (1985)
A Cor Púrpura, Steven Spielberg

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

13.11.12

Citações (3)

Jurassic Park (1993), Steven Spielberg


Dr. Ian MalcolmGod creates dinosaurs. God destroys dinosaurs. God creates man. Man destroys God. Man creates dinosaurs.
Dr. Ellie SattlerDinosaurs eat man. Woman inherits the earth.

11.11.12

Oldboy (Oldeuboi) (2003)

Oldboy - Velho Amigo, Chan-wook Park


Estamos talvez perante uma das melhores histórias de que o cinema se serviu, genialmente preparada, cozinhada e manipulada num filme que escasseia os elogios que lhe poderemos dar. Numa obra que nem precisava de grande arrojo no plano da realização, detendo esta maravilha de argumento, é-lhe ainda adicionada um esquema e (des)organização na filmagem a todos os níveis brilhante. Chan-Wook Park é o hábil manipulador das sensações e desta constante instabilidade que se sente no decorrer da história e do encadeamento da trama, ao ponto de passar uma mensagem terrivelmente violenta e forte ao espectador, tornando-se inclusive ela própria algo estranha, incompreensível e, porque não, do outro mundo.

Desde o início, é claro e ao mesmo tempo incerto, para onde Park nos vai levar, para onde aquela rede de vingança, traição e sentimentos ocultos nos vão conduzir. Os olhos do protagonista, numa performance arrebatadora, dizem tanto e tão pouco, e nós, testemunhas, indefesos e rendidos, vê-mo-nos cedo a acompanhar e a sentir todos os passos dados por tal homem, e de arrasto, por situações que lhe vão (en)calhando, um pouco sem se perceber porquê. A claustrofobia, o medo, a solidão e a própria condição e existência humanas são temas bem evidentes aqui, que extrapolam inevitavelmente para fora do ecrã. Daí que as interrogações são mais que muitas e as respostas quase nenhumas, e durante muito tempo a confusão e a incompreensão não diminuem. O enigma vai permanecendo, mas sempre em doses apelativas e nunca frustantes, tanto quanto a desconfiança da resolução que presumivelmente se traduzirá à nossa frente.


Por outro lado, e paradoxalmente, vamos edificando uma espécie de confiança na expectativa e na própria história em si, quase como se fosse impossível nos defraudarem com o levantamento do véu, com a solução daquele quebra-cabeças, cada vez menos importante. Isto porque o deleite visual, sonoro e interpretativo é constante, atingindo mesmo patamares de rara imprevisibilidade, diversidade e originalidade. Tudo se constrói, física e psicologicamente, de forma surpreendente e por demais virtuosa, pelo que se compreende que às tantas já estamos divididos num equilíbrio entre o prazer de assistir a tão belas sequências e entre tentar desvendar o propósito deste jogo, digamos.

Talvez já não interesse se o final é de ficar de boca aberta, talvez o que importe mesmo é a reflexão e as sub-camadas de um puzzle que se encaixa diante de nós. O interessante, para além da inequívoca qualidade dos efeitos narrativos, está no reflexo e na força com que somos atingidos por eles mesmos, pela mensagem central e marginal, ou pelos temas de ódio, maldade, compaixão, lembrança e esquecimento. O passado estará sempre na mesma balança que o futuro, numa espécie de peso ideal, e a esperança é tão necessária quanto a verdade e a culpa dos actos praticados.


Destaque para a montagem de toda a película, provavelmente o factor decisivo, unificador e de classe para a excelência do projecto final, bem como de uma cena em particular, o plano-sequência da luta entre o personagem principal e uns quantos (muitos) adversários, em que a câmara assume vontade própria, desenhando e programando a acção num estilo impróprio e em ângulos, no mínimo, irreverentes e audazes, e no máximo, de uma criatividade, capacidade e versatilidade imensas. Um exímio exercício, de um formalismo e confluência de géneros assaz inovadores. O grafismo e algumas técnicas em câmara lenta são igualmente muito bem utilizados e enquadrados na intensa narrativa, neste exemplo mas de um modo geral.

Grande parte das cenas são ainda, aliás, de uma ambiguidade desarmante e, não menos, inquietante. Detentoras, por vezes e em simultâneo, de uma contenção e brutalidade sem precedentes. Para isso a fotografia e toda a atmosfera do filme estão à altura, a condizer e a respirar entre si e ainda adequadas aos níveis de emoção presentes. Tal como a banda sonora realça e sublinha parágrafos certeiros do guião. Então os momentos finais são qualquer coisa de irreal, de tão poderosos, simples e aflitivos que se tornam, confirmando e arquivando este Oldboy como uma peça de arte em bruto, de um grau de perfeição ímpar.

"Your gravest mistake wasn't failing to find the answer. You can't find the right answer if you ask the wrong questions."
Woo-jin Lee


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

4.11.12

1 Tema, 3 Filmes (1)

Sátira à Guerra

The Great Dictator (1940)
O Grande Ditador, Charles Chaplin

To Be or Not to Be (1942)
Ser ou Não Ser, Ernst Lubitsch

Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964)
Dr. Estranho Amor, Stanley Kubrick

por Jorge Teixeira e Pedro Teixeira

30.10.12

Citações (2)

The Ox-Bow Incident (1943), William A. Wellman


Gil Carter"My dear Wife, Mr. Davies will tell you what's happening here tonight. He's a good man and has done everything he can for me. I suppose there are some other good men here, too, only they don't seem to realize what they're doing. They're the ones I feel sorry for. 'Cause it'll be over for me in a little while, but they'll have to go on remembering for the rest of their lives. A man just naturally can't take the law into his own hands and hang people without hurtin' everybody in the world, 'cause then he's just not breaking one law but all laws. Law is a lot more than words you put in a book, or judges or lawyers or sheriffs you hire to carry it out. It's everything people ever have found out about justice and what's right and wrong. It's the very conscience of humanity. There can't be any such thing as civilization unless people have a conscience, because if people touch God anywhere, where is it except through their conscience? And what is anybody's conscience except a little piece of the conscience of all men that ever lived? I guess that's all I've got to say except kiss the babies for me and God bless you. Your husband, Donald."

28.10.12

C'era una volta il West (1968)

Aconteceu no Oeste, Sergio Leone


Era uma vez no Oeste, ou Era uma vez O Oeste, título e tradução do inglês - Once Upon a Time in the West, por sua vez traduzido do original C'era una volta il West - mais correcta e, sobretudo, mais fiel à essência do filme e ao conceito inicial criado. Para o português chega-nos a tradução Aconteceu no Oeste, que provém e insiste no erro do homónimo título inglês, e que pouco nos diz sobre a película de Sergio Leone.

Aconteceu no oeste, como poderia ter acontecido a nascente, passe a ironia, remetendo-nos, à partida, para mais uma história no velho Oeste Americano, que na certa se destacará por um vilão mais carismático ou por um par central mais romântico que nunca. E é assim que idealizamos o filme, se nos restringirmos apenas ao título do mesmo e não olharmos para o verdadeiro (e único) título - o original, o italiano, o tal que nos anuncia a queda de algo, o declínio de anos vividos ou o derradeiro fim de um estado e de um sistema de costumes.


Ainda mal nos aconchegamos no nosso lugar para a sessão, já estamos desaconchegados, digamos, perante o silêncio e a tensão estrategicamente desenvolvida à nossa frente. Tudo se desenha com tamanho detalhe e minúcia que os próprios minutos parecem não avançar. Estamos, pois, num cenário à parte, acabamos de aterrar num local distante - uma estação - incaracterística e, à falta de melhor, ficamos também à espera que o comboio chegue, seja lá o que isso for, ou o que isso nos traga, melhor dizendo. Acção, pistolas e tiroteio, inevitavelmente, mas estranhamente, na medida em que nada sabemos sobre os protagonistas da cena em questão, apenas que um suposto ajuste de contas está inerente. Culminamos, desta forma, no expoente de uma cena que terá todos os motivos para lhe tecer rasgados elogios, desde os ângulos e enquadramentos arquitectados ao pormenor, até à montagem sequencial e harmónica que potencia as personagens e o poder da antecipação, como ainda por um trabalho notável de sonoplastia. De génio, e é dizer pouco.

Introduzida que está uma das personagens principais (a que sai ilesa do confronto), seguimos para outra, e do suposto herói passamos para o vilão, tal como da estação passamos para o campo. Agora, por terras "ainda" longe do tão próspero caminho-de-ferro, seguimos outras pessoas, aqui não um bando ou uma gangue, antes uma família, e portanto, o retrato de hábitos diários, que ao que parece não tão diários quanto isso - é evidente que se está a preparar alguma ocasião especial. As poucas palavras indiciam isso mesmo e o silêncio mais uma vez adensa-se, voltando a fazer das suas. Estamos, então e novamente, com a tensão lá em cima e preconizamos algo, desta vez mais forte, quiçá mais preponderante para a história. E, nada acontece. Mau sinal. Sinal de que não acabou e que virá mais, e aí sim para devastar, para introduzir o propósito e o cerne de toda a trama. É senão, o mau da fita e os seus desígnios. Está encontrado, pois, o vilão, o adversário, e os opostos estão preparados para se começar a atrair.

Tudo o que virá a seguir se desenhará sob os mesmos contornos e sob a mesma mecânica episódica de filmar. E é dessa mecânica, dessa matéria-prima que o filme se faz, marcado que está agora o ritmo. A comprovar essa tendência estão as duas cenas seguintes que apresentam mais dois protagonistas: a personagem feminina, que confere a elegância e o balanço emocional precisos e cirúrgicos, e a personagem carismática, por assim dizer, aquela que acrescenta a descontração que o filme equitativamente possui, tantas vezes necessária para assentar e retemperar forças. As referidas cenas são muito bem filmadas, para não variar, e à semelhança das anteriores dão primazia às expressões, aos olhares, ao tempo como personagem (mas sem pressas), respirando quase sempre nas entre-linhas. O folgo ou a descompressão acontece porque há silêncios, mas também e principalmente porque a música se intromete, de uma forma brutal e emocionalmente fracturante.


Posto isto, as personagens principais estão apresentadas e perfeitamente definidas (em desempenhos exemplares a propósito), mas ainda por explorar. Ao longo do filme, a circulação das mesmas se dá consoante o próprio argumento as convoca, equilibrada e proporcionalmente, assim como a banda sonora surge aliada aos protagonistas e ao contexto presente (não será a faixa correspondente a Jill das mais belas de sempre?). Existe, pois, como que uma sequência de capítulos construindo a história, uma sequência de sub-narrativas paralelas (e perpendiculares) que, eventualmente, se cruzarão e culminarão de vez no desenlace final, sempre numa cadência certa e doseada quanto baste.

Para além disso, pode-se dizer que tudo o resto está, de igual modo, ao mais alto nível, desde a fotografia, perfeita no retrato interior de uma América desértica, até a uma cenografia de um primor extasiante, bem como ainda por uma banda-sonora do melhor que Ennio Morricone nos deixou - a beleza e a versatilidade das músicas estão, como já foi dito, na correspondência que existe entre protagonistas e determinadas faixas, ao ponto de marcar e imortalizar cada plano e cada cena. A realização é, nesse sentido, também ela genial, sempre atenta à mensagem por de trás tanto quanto sensível às linguagens, ora no detalhe, ora na fruição e contemplação de panorâmicas. Dentre inúmeros planos fabulosos e potencialmente com muito para analisar, destaque especial para uma das cenas finais, em analepse, em que tudo se mexe, tudo faz parte da orquestra e contribui para a realização atempada, crescente e apoteótica de uma revelação e posterior duelo final a todos os níveis extraordinários e deveras prodigiosos.

No trabalho de montagem e no departamento de som o assombro continua, já referido particularmente na cena inaugural, pelo que mais uma vez encontramo-nos perante um verdadeiro exemplo de perfeito encaixe entre tudo o que constitui um filme, no caso enquadrado e mantido em quase três horas de duração, mas preparado para mais se tal fosse pertinente, tal o encadeamento e lógica perceptíveis.


Sergio Leone brinda-nos talvez com a sua melhor obra, pelo menos no que a valores estéticos e artísticos dizem respeito. Se é notória aqui uma forte influência dos westerns clássicos americanos, de que John FordHoward Hawks, Anthony Mann, entre outros, fazem parte, também associamos o próprio sub-género spaghetti (ao qual este filme pertence) como o factor preponderante e a principal influência para ingerir a audácia e uma nova identidade que, não raras vezes, vinha a faltar aos clássicos do género maior.

Por outro lado, a evolução desde A Fistful of Dollars (do mesmo Leone) é evidente, dando a sensação que o cineasta se foi completando e ambicionando a cada novo projecto um voo maior. Um pouco como Tarantino fez (e vem fazendo) anos mais tarde, realizador que sofreu imensa influência destes westerns à italiana, e sobretudo, do mestre citado.


C'era una volta il West contém, deste modo, tanto por onde depurar e apreciar que é absolutamente delicioso e refrescante, sendo que tem sobrevivido (e se elevado) com o passar do tempo, nunca se esgotando às primeiras visualizações. Há sempre mais qualquer coisa por ver, por descobrir e por degustar outra vez. A mensagem subliminar também é ela mais que pertinente e marcante na época que se insere a narrativa - o início do fim do Oeste, tal como o conhecemos de então, destruído pelo progresso, pelo dinheiro e pelo poder invisível.

Diria que esta obra, acima de tudo, condensa e homenageia o western em si, ou o estilo nas suas várias correntes, como nunca antes se tinha feito. Artisticamente falando, o filme extravasa qualquer género e sub-género (ainda que se inserindo neles), tal como ultrapassa referências e estereótipos vincados em várias décadas, destacando-se mesmo como um dos melhores filmes jamais realizados. Obra-prima.

"Do you know anything about a guy going around playing the harmonica? He's someone you'd remember. Instead of talking, he plays. And when he better play, he talks."
Cheyenne


Jorge Teixeira
classificação: 10/10