25.2.14

Gravity (2013)

Gravidade, Alfonso Cuáron


O vazio e o silêncio, ou a visão e a audiência. É com estas quatro pedras basilares e duas peças estruturais (ou direi astros elementares?) que o filme começa e se propaga, qual Big Bang em expansão, em incontáveis rotações e translações perspécticas. Lançado que está, desde logo, pelo espaço fora e pela mente dentro do espectador sedento de mergulho e de navegação, a fita como que se desenrola e se direcciona para o infinito, no emaranhamento do universo e do nosso sistema solar, com destino traçado e mais que programado ao alvo (e alto) astral. Se, por um lado, a astrofísica e o espaço cósmico são deveras aliciantes para nos embrenharmos de imediato no desconhecido e no proibido, por outro, a filmagem induzida, ao jeito de um videojogo na primeira e na terceira pessoas, são completamente inebriantes e fascinantes de uma ponta à outra da fita e de um globo terrestre - a nossa amável Terra - que vislumbramos ou que pressentimos sempre e a qualquer altura no grande (e definido) ecrã, segurando-nos e confortando-nos, ao ponto dos extremos se unirem e constituírem tão só a espiral existencial e emocional da nossa fé.

De movimentos de câmera a planos(-sequência) de encher o olho, literalmente, o filme surge a bem dizer como um objecto que não visualizamos, mas sim nos dispomos a receber e a aceitar prontamente, quiçá a nos envolvermos fisicamente, o qual por sua vez se debruça ou se inclina perante o observador - um mero grão no seio do oceano negro e inesgotável - que se sente desse modo totalmente absorto e esmagado em constantes e alucinantes percursos intra e inter-estações espaciais. O início de tamanha aventura é então espantoso, oportunamente de realce, sob um abismal e prolongado plano-sequência raras vezes visto em cinema. O impulso, as deslocações, a agitação e a agilidade digital de todo o processo abraça-nos de tal forma absorvente e extasiada (mais tarde desesperante até) que para nós é como se estivéssemos também ali, com falta de oxigénio, no vácuo e na escuridão, durante aqueles dez minutos, junto aos dois personagens, aos seres que circulam desenfreadamente defronte à plateia em suspensão ou mar de gente em notórias e visíveis vertigens.

Na verdade, inteiramo-nos como verdadeiros manipuladores da acção e, sobretudo, da reacção que simuladamente vamos desempenhando ou vivido timidamente, tal como se pertencêssemos, com efeito, ao filme. Este que, a propósito, não se concebe, por isso, sem um espectador receptivo, sem o sujeito dado o objecto. Dentro de outros motivos, simplesmente porque o quadro, em geral captado no seu inteligente enquadramento, deixa de fazer sentido ou, somente, deixa de ser sentido na sua plenitude (entre muitos exemplos, as atraentes e credíveis paisagens de um planeta com o nascer do Sol, de tão próximo e de tão afastado que se encontra e que se afigura simultaneamente).


Marcado que está o ritmo, e apresentado que estão os protagonistas e o contexto presente à primeira cena, ou diria às primeiras voltas e reviravoltas, o assombro ou a proeminente filmagem não se esgota aqui, existindo sempre em sistemático pano de fundo uma profundidade respeitável e estimável (potenciada com o 3D), hipnotizando-nos e intimidando-nos, com as emoções e as frustrações a acontecer à superfície e em primeiro plano. Este que é (des)construído invariavelmente, ora a poucos centímetros e com o protagonismo, ora a largos metros (ou anos-luz?) e com a irrelevância de um figurante ou de um detalhe, e vice-versa, na exímia composição ocular, quase esférica, que Cuarón nos propõe mediante opacidades e transparências ou reflexões (a Terra vista do capacete reflector, a Terra vista através do vidro da estrutura artificial em órbita, etc).

De exemplos está o filme sobre-carregado deles, desde os estilhaços da destruição a quase nos cegarem, figuradamente - em virtude da proximidade e da ligação aos acontecimentos - à entrada culminante na atmosfera numa fase mais emocional e mais musical. O destaque ainda assim vai especialmente para a conclusão do longo plano-sequência inicial ou para a transformação deste numa subjectiva na personagem, e na cara de Bullock. No começo do descalabro da missão, o remate dá-se segundo um plano que parte do espaço externo para o interno do capacete, ou da máscara, num completo ângulo circular que nos coloca expressamente com a engenheira médica (impelida a astronauta), percepcionando aí toda a angústia e toda a confusão da mesma e, porque não, também de nós mesmos. Aliás, estes frequentes e próximos planos de rosto são mais do que adequados ao medo e à fobia que o espaço sideral, entre astros e planetas, provoca opressivamente em todos, sem excepção.

Outro ênfase incide em duas ou três ocasiões em que a água entra em acção - elemento essencial além do ar, da terra e do fogo (todos eles simbólica e equilibradamente abordados) - aqui através das lágrimas à deriva e das gotas que perpassam ou embatem (alerta para a realidade?) a câmera, o campo e o entendimento, pois então, numa visceral coreografia de corpos. Notável metáfora esta, ou subtil habilidade no tratamento das potencialidades da narrativa, da filmagem e da tecnologia. Por último e apenas por agora, a distinção recai ainda no gesto embrionário, claramente referencial, que a Doutora Ryan Stone perpetua através da posição fetal aquando da entrada na nova e esperançosa estação, e no primeiro contacto com um interior fora do exterior implacável. Momento, diria, único em quase toda a longa-metragem, em que o simbolismo e a mensagem avançam em relação à intrincada, e por vezes perturbadora, diversão e estupefacção virais que alinhamos praticar durante infindáveis minutos.


O jogo é, portanto, complexo e recheado de múltiplas camadas, qual cebola que está pronta a ser descascada, passe a expressão, à medida que o entusiasmo aumenta e a comoção é desencadeada (porventura o choro, dependendo de cada um), bem como ainda quando o efeito de gravidade zero se estabelece, num então permanente exercício ou conversação entre objectos (de)talhados para as três dimensões (com ou sem a visualização em 3D). Camadas de percepção e de apreensão, claro está, não fossem o espaço cénico, os ângulos cónicos, as distâncias geométricas e os exemplos acima referidos verdadeiras ferramentas ou cruciais truques para a sempre surpreendente ilusão, nua e crua, sem artifícios e capaz de questionar a nossa própria sanidade. Trata-se, tão só, da magia do cinema em todo o seu encanto e sedução.

Por certo, estamos perante uma viagem deslumbrante, inquietantemente contagiante e pujante a todos os níveis, dos campos pensados e enquadrados, sempre em movimento, à subjectividade dos respectivos contra-campos, em gestos contínuos e determinados apenas com o intuito de sentir e habitar o espaço prometido, daí que sem uma suposta e aparente ambição de mistificar ou de reflectir perante o disposto. O guião não será, pois, regido maioritariamente por questões filosóficas, mas apesar de tudo tece respostas, por mais simples que sejam, sobre a solidão, a superação e a renovação da vontade em viver, ao jeito de uma nova gravidade que com Ryan voltamos a sentir e a vivenciar.

De qualquer modo, está-se, acima de tudo, sob contornos de aventura e de suspense, brilhantemente filmados e montados, não fosse o argumento, veiculado na sobrevivência ou constantes obstáculos em direcção à redenção, minimalista (e não menor, atenção) em toda a edificação do projecto. Pode-se considerar, a título informativo, algum descrédito para com eventuais imprecisões científicas e para com a narrativa, entre um personagem secundário aquém do patamar e um terço final inclinado e um pouco desalinhado para com o resto do filme, que creio não ser nem justo, nem, sobretudo, ajustável totalmente ao objectivo e linguagens próprias envolvidas. Não que isso diminua ou sequer belisque em demasia a obra do cineasta mexicano, até porque quem parece necessitar de acordar, a propósito e entretanto, somos nós, após tamanho ensaio ou prova visual, onde, de facto, se confere que as imagens valem mais que mil palavras.

Para além da realização e da montagem, nas suas intencionalidades, o filme ainda possui na fotografia, na banda sonora, no som, nos efeitos especiais e na interpretação de Sandra Bullock qualidades acima da média, que mais do que apropriadas, se revelam autónomas e cintilantes elas próprias, muito embora o deslumbramento esteja ou funcione pelo conjunto, como é óbvio. Alfonso Cuáron por seu lado, assume-se cada vez mais como um autor de renome da actualidade, nem que seja apenas porque nos cede, ou melhor, porque nos oferece o que geralmente ansiamos do leque de escolhas ou alternativas disponíveis neste meio artístico - total imersão e abstracção fílmica e pura do meio envolvente e circundante.

Nesse sentido, Gravity é absolutamente exemplar, uma vez que nos transporta telepaticamente, de mãos dadas, para outro universo, para outra noção de experiência inacreditável, levada ao limite e ao que cada um, intervenientes abrangidos, conseguirá suportar, quem sabe, deixar-se levar pelos seus estímulos e sensações. Para no fim, com a personagem a sorrir, nos lembrarmos, nos esforçarmos e nos reerguermos de baixo para cima (em contraste com a sistemática elevação da câmera ao longo de todo o filme), completando assim uma autêntica parábola experimental, entre os eixos horizontal e vertical ou, enfim, entre a terra e o céu.



Jorge Teixeira
classificação: 9/10

24.5.13

Mystic River (2003)

Mystic River, Clint Eastwood


A cidade como que vive e sobrevive na sua quietude e paciência eternas. As pessoas caminham e se cruzam entre si, preenchendo as ruas, o espaço e os vazios da temporalidade. Na sombra está o rio, o Mystic, que corre sem pressas e sem problemas, sistematicamente, qual cenário belo e fixo. Contempla calmamente o panorama citadino e a vida dos intervenientes da sociedade em que se envolve. Circulando e assistindo ao dia-a-dia, o rio é, porventura, a única testemunha de algumas situações e acontecimentos graves ou preponderantes na charneira que por vezes se desenha à sua frente, incauta e despropositadamente. O rio sabe os segredos mais obscuros, mais esquecidos, e portanto, sabe quase sempre mais que nós, transeuntes e meros peões numa malha que por si só se perde e se emaranha na complexidade da vida.

É neste cenário e sobre este prisma que a história deste filme se desenrola. Divide-se, desde logo, em duas - a primeira, na infância e na inocência própria desta fase. As brincadeiras são muitas, as traquinices ainda mais, e, logo, não será de estranhar que um mero encontro despoletará a mais vil recordação e, infelizmente, a fractura decisiva. Acaso ou não, a situação mudará para sempre a vida dos três amigos, os três protagonistas do filme, à data parceiros inseparáveis. Na segunda parte da história, e transportados anos mais tarde, constatamos que a amizade antes inquebrável se situa agora no limiar entre a memória e o simples reconhecimento. A vida concede voltas, e o seu curso toma direcções díspares, pelo que os três amigos, ainda que vivendo sob o mesmo tecto urbano, assumem posturas e profissões sociais distintas. Os cruzamentos pelo bairro e pela vizinhança revelam apenas e só lembranças e (des)apreço mútuo. A reter, por isso, estará nesta fase, e inequivocamente, a família e o quotidiano que se adensa, pelo que a infância reflecte única e exclusivamente uma nostalgia do passado, vivido sob a alçada do bairro e do rio transversalmente atento.

Entretanto, outro acontecimento se dá, e, uma vez mais, o Mystic é testemunha. Evocando certas memórias, é a partir deste ponto que começará então o mistério e o drama profundamente enraizados e escondidos de há muito. A suspeita, o medo e a incerteza modelam o espaço e, sobretudo, o subconsciente. Como se aquele fatídico dia e o acontecimento consequente nunca pudesse cair no total e absoluto esquecimento. De facto, é evidente, certos traumas permanecem e se demarcam, definindo e construindo identidades e amizades socialmente precipitadas, ao ponto de a confiança dar lugar à acusação e ao desrespeito quando é conveniente. É triste, mas no fim de contas verdadeiro e humano, por mais atroz e cruel que isso possa parecer.

No fundo, três amigos, três adultos e três casais formam a estrutura e a evolução do próprio filme (e da própria vida), sem retorno e sem emenda. Particularmente, determinam a história e o drama presente, que entrelaçado na vivência e na actividade de cada um se desenhará segundo os contornos da personalidade e da crença individuais. Nada resiste à mudança e ao tempo, pelo que o crescimento é inevitável, no bom e no mau sentido, e o que antes era duvidoso e desconfortável, agora pode-se revelar certo e determinante. Ou não, quem sabe?! Aqui, apenas o rio, o Mystic, que é o elo entre as recordações e os acontecimentos presentes, é como que a metáfora das alegrias e das mágoas, as quais aparente e temporariamente ficam submersas, mas que face a actuais tragédias regressam à margem e à superfície com uma brutalidade e crueldade inesperadas. Resta o discernimento, a ponderação e a calma, tão difíceis nestes momentos.


Clint Eastwood, apoiado por uma excelente fotografia e por uma grande banda-sonora, filma o drama numa cadência sombria e policial, e com uma contenção e uma intensidade notáveis. Retrata e explora tanto as nuances psicológicas dos seus personagens, quanto a normalidade e a frieza do quotidiano de um bairro, onde todos se conhecem e onde todos estão, intimamente, prontos a apontar o dedo. Travellings sobre o rio acentuam a sua tal presença assídua, os planos fixos, sinceros e solidários com o argumento demonstram uma opção certa, tal como ainda os ligeiros movimentos de câmera denunciam particulares sequências e momentos fracturantes. A título de exemplo, a cena da revelação da morte de uma personagem e da consequente tomada de conhecimento paternal é tremendamente reveladora deste aspecto. Arrepiante. Grande cena, e a propósito, grande Sean Penn.

Mystic River se assume assim, qual rio profundo, como um dos mais ocultos e intensos dramas da década transacta. De emoções fortes e com uma densidade e profundidade destacáveis, é nas personagens, as tais seis pessoas (em sublimes interpretações), que verdadeiramente se define, ainda que, e sempre, a contenção e a respiração que Eastwood é capaz de sustentar o abrilhante ainda mais. Por tudo isto, resta-nos somente mergulhar na realidade, por mais cinzenta e violenta que ela seja.

Texto originalmente publicado na iniciativa 'O Cinema dos Anos 2000' do blogue Keyser Soze's Place


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

11.5.13

A Tale of Two Sisters (2003)

História de Duas Irmãs (Janghwa, Hongryeon), Jee-woon Kim


Desde o início é evidente que estamos a assistir a algo que de básico e de fácil não tem nada, antes pelo contrário, estamos na presença de um processo que envolve mistério e suspense em doses extremamente apelativas. Espécie de enigma, que flui e se enleia, passo a passo, sob um claro manto de desconfiança e desconhecimento sobre aquilo que se vê e se vive temerosamente. Nesse sentido, o filme revela-se bastante desafiante não só pela tentativa de resolução do problema presente, mas também pela realização virtuosa e cativante que se movimenta e se conjuga diante de nós, qual jogo do gato e do rato (às escondidas).

Restringindo-nos à narrativa, estamos, antes de mais, perante uma história ou tragédia familiar, em que cada membro deste escasso núcleo detém uma importância vital. Duas irmãs, o pai e a madrasta são as únicas peças em movimento e em relacionamento constante, de tal forma que as cenas parecem repetir-se, aparentemente, pois na verdade essa insistência vai acrescentando e solidificando as empatias e, sobretudo, as divergências. À medida que se avança na rotina, os confrontos vão-se adensando, em particular entre a madrasta e as (inseparáveis) irmãs, que não alcançam tudo o que testemunham, ora de dia em constantes dúvidas e suspeitas, ora de noite sobre terríveis calafrios e adversidades. Facto preponderante e premonitório daquilo que, cada vez mais, se antevê ansiosamente como (in)evitável.

E é por aí que o argumento é explorado, na surpresa e na alternância entre o visível e o oculto, ou entre realidade e imaginação, em que a ameaça não é física e materializável, antes desconhecida e inquietante. No fundo, o que prevalecerá mais? Aquilo que vemos e receamos antever nos sistemáticos episódios? Ou aquilo que não percebemos e não encaixamos no quebra-cabeças que, crescentemente, se formaliza de frente às protagonistas e ao espectador? Questões dúbias e desconfortáveis, não fosse existir uma certa ambiguidade e surrealismo no próprio filme. Sendo o terror o género mais visado, talvez aqui o efeito fantasmagórico até defina melhor as sensações psicológicas, e não explícitas, que gradualmente são transmitidas. O drama é, contudo, também atingido, pelo que se pode dizer que a película tem mais essa exemplar capacidade, a de atravessar diversos géneros e ambientes sempre de um modo contínuo e diluído o quanto baste.

Cada cena é, então, demasiado importante para o domínio e para a compreensão dos acontecimentos passados, ou daquilo que aconteceu e marcou terrivelmente esta família. Numa total desarmonia entre os membros presentes na casa, todos os passos dados são essenciais, daí que Ji-woon Kim assuma cada sequência como se fosse a última, tal a força e a dinâmica imprimidas nos ângulos e movimentos de câmera. Tal como o simbolismo que é assumido, frequentemente, em cada plano, na cor e na luz, quase como se fossem quadros ou pinturas (a fotografia é destacável) que detêm mais códigos que imagem ou visão propriamente dita. A decifração não se dá, portanto, apenas e só no papel ou naquilo que se interpreta narrativamente, mas também tendo em conta o visual ou aquilo que vemos e reinterpretamos dada a posição e a subjectividade da câmera. Resumindo, há como que diversas camadas de representação e dedução que o próprio argumento possui, e sobretudo, sustenta.

História de Duas Irmãs é, no fim de contas, um parente próximo dos filmes de David Lynch, em que a acção está mais fraccionada que definida ou até estruturada, e em que o factor medo ou o terror, sob uma atmosfera completamente gélida e arrepiante, está bem presente e suportado pela exemplar componente técnica. Se por um lado, é de segredos que o filme vive e subsiste, é, acima de tudo, através do encadeamento deles e da forma como se vão somando (e subtraindo) que o mesmo se torna altamente recomendável. Um exímio exercício formal e narrativo, que acaba por ter na união das duas irmãs a sua verdadeira alma e inteligência.

Texto originalmente publicado na iniciativa 'O Cinema dos Anos 2000' do blogue Keyser Soze's Place


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

19.3.13

My Neighbor Totoro (1988)

O Meu Vizinho Totoro (Tonari no Totoro), Hayao Miyazaki


Miyazaki tem-nos brindado, ao longo das últimas décadas, com autênticas obras-primas da animação, género que se situa um pouco à parte dos restantes, mas que é tão unificador e tão poderoso como qualquer um dos outros. Verdadeiros exemplos disso mesmo são os filmes do mestre japonês, que, à falta de melhores palavras, emanam um carisma e uma frescura por demais cativantes. O Meu Vizinho Totoro é um desses casos, porventura um dos mais caracterizados e singulares, e por isso, de um valor inestimável.

A história é simples, o enredo é infantil, mas conduzido com uma pureza e imprevisibilidade simultaneamente aguçantes e apetecíveis. Ás tantas porque nos vemos transportados inevitável e entusiasticamente para um mundo de fantasmas e de seres improváveis, fruto da imaginação das crianças protagonistas da trama, as quais inseridas num novo espaço e terreno se vêm a explorá-lo e a captá-lo sob um prisma só delas, e só alcançado por uma ingenuidade e capacidade embrionárias. Esta liberdade sem limites e sem barreiras da infância (fase privilegiada), leva à aventura e ao desbravamento de impossibilidades, de caminhos onde valores são apreendidos e são interiorizados, mais que não seja, pelo erro e pela frustração. Totoro é o ser material e imaterial de todo este imaginário de mistério e descoberta, e o pai (a família) em casa, no lar, é a consciência, é a responsabilidade do passado e do futuro enquanto projecções pessoais e profissionais. É também ainda o equilíbrio, a estabilidade necessária para a deposição e mastigação das aventuras exteriores.

Facilmente se depreenderá que as mensagens são muitas, são aliás uma marca do cineasta, que através delas transmite e analisa as fases e diversas vertentes do ser-humano, tão complexo e fascinante, ou no fundo, tão humano que simplesmente é. Nas linguagens, Miyazaki assume o desenho à mão, em belíssimos e fantásticos retratos, seja a explorá-los, seja a contemplá-los. Neste caso, mais na contemplação, visto estarmos perante um filme distinguível na sua carreira, tratando-se, sobretudo, de um exercício narrativo e imaginário, que propriamente visual e estilístico. No fim, constatamos de que assistimos a um filme verdadeiramente belo e único.


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

5.3.13

Spirited Away (2001)

A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi), Hayao Miyazaki


Como em qualquer filme ou trabalho fabricados por Miyazaki, estamos na presença de uma profundidade e de uma complexidade artísticas de enorme valor. Esta Viagem de Chihiro, no seu título português, aborda novamente todas as marcas do autor, contemplando, mais uma vez, todo um universo fantástico, rico em personagens e simbologia.

O filme conta a história de uma rapariga de 10 anos de idade que, vagueando, se envolve num mundo onde imperam estranhas criaturas e paisagens invulgares, segundo regras exteriores a qualquer lógica (alusão clara a Alice no País das Maravilhas). Um universo desconhecido, mas, à sua maneira, extremamente belo e cativante, que, acima de tudo, merecerá, por parte da protagonista e de nós, uma entrega total.

A viagem de Chihiro revela, assim, em jeito de jornada imaginária, uma busca pela identidade, pelo passado, na aventura e descoberta de valores (esquecidos) e de um mundo totalmente novo, onde às tantas damos conta de uma evolução e transformação a cargo de Chihiro, mas também de nós próprios, espectadores. A recompensa ao longo do filme e no seu término é, portanto, gigantesca e tremendamente benéfica. Para efeitos didácticos e educativos são imensas as referências a princípios e a posturas dentro da sociedade (pelo meio, por exemplo, o facto de nem sequer o ouro corromper Chihiro).

Uma viagem mais pessoal e menos épica do que outras obras do realizador, que, no seu curso, ainda nos vai retribuindo visualmente em deliciosos retratos e ambientes, e narrativamente em abundantes e intrincadas metáforas, ora nos seres transfigurados e mistificados sobre duras realidades, ora nas problemáticas e preocupações ambientais (mensagens recorrentes em Miyazaki). As próprias personagens, de tão bizarras e de tão mágicas que são, sugerem sempre mais que a mera aparência, transparecendo, invariavelmente, uma natureza implícita e, portanto, o humanismo que daí advém.

Na concepção, o realizador e toda a sua equipa, executam inúmeros frames desenhados à mão, de uma riqueza e esplendor extasiantes. O nível de detalhe em cada plano e em cada cena é impressionante, a tal ponto que basta a sua visualização e desfruto sem falas para ficarmos habilmente concentrados. Facto que permite não só o silêncio e a contemplação, mas também a respiração e posterior reflexão intrínseca.

Espécie de confluência de trabalhos anteriores, Miyazaki cria com este filme talvez a sua obra mais perfeita, mais una em todos os sentidos, reciclando conceitos e elementos já por si explorados. Possui o encantamento do mistério e da aventura de My Neighbor Totoro, a mensagem ecológica de Princess Mononoke, o universo paralelo, complexo e desconhecido de Castle in the Sky ou de Nausicaä of the Valley of the Wind, entre outros conceitos e referências que espelham bem esta sua tentativa de aperfeiçoamento. Revela, acima de tudo, o gosto e a dedicação pela criação de uma história e de uma visão, concretizadas na excelente alternativa que a animação a duas dimensões oferece.

Spirited Away é senão uma espécie de conto de fadas moderno, onde se aprende a enfrentar e a ultrapassar medos e limitações. O filme aborda, deste modo, diversos assuntos e sobre diversas vertentes, tornando-se, então, algo de extremo recurso e ao qual não se fica indiferente, seja pela sua complexidade, seja pelo fascínio visual que transmite. No início do filme, e no atravessar do túnel, no limiar entre o real e o imaginário, ou entre o comodismo e a (auto)descoberta, reside a verdadeira essência da película – o crescimento, sobretudo na infância, e o enriquecimento pessoal que está à espreita sempre ao virar de cada esquina. A eterna aprendizagem e os sentimentos ocultos que só alcançamos se tentarmos, se tivermos a audácia de caminhar.

Texto originalmente publicado na iniciativa 'O Cinema dos Anos 2000' do blogue Keyser Soze's Place


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

11.11.12

Oldboy (Oldeuboi) (2003)

Oldboy - Velho Amigo, Chan-wook Park


Estamos talvez perante uma das melhores histórias de que o cinema se serviu, genialmente preparada, cozinhada e manipulada num filme que escasseia os elogios que lhe poderemos dar. Numa obra que nem precisava de grande arrojo no plano da realização, detendo esta maravilha de argumento, é-lhe ainda adicionada um esquema e (des)organização na filmagem a todos os níveis brilhante. Chan-Wook Park é o hábil manipulador das sensações e desta constante instabilidade que se sente no decorrer da história e do encadeamento da trama, ao ponto de passar uma mensagem terrivelmente violenta e forte ao espectador, tornando-se inclusive ela própria algo estranha, incompreensível e, porque não, do outro mundo.

Desde o início, é claro e ao mesmo tempo incerto, para onde Park nos vai levar, para onde aquela rede de vingança, traição e sentimentos ocultos nos vão conduzir. Os olhos do protagonista, numa performance arrebatadora, dizem tanto e tão pouco, e nós, testemunhas, indefesos e rendidos, vê-mo-nos cedo a acompanhar e a sentir todos os passos dados por tal homem, e de arrasto, por situações que lhe vão (en)calhando, um pouco sem se perceber porquê. A claustrofobia, o medo, a solidão e a própria condição e existência humanas são temas bem evidentes aqui, que extrapolam inevitavelmente para fora do ecrã. Daí que as interrogações são mais que muitas e as respostas quase nenhumas, e durante muito tempo a confusão e a incompreensão não diminuem. O enigma vai permanecendo, mas sempre em doses apelativas e nunca frustantes, tanto quanto a desconfiança da resolução que presumivelmente se traduzirá à nossa frente.


Por outro lado, e paradoxalmente, vamos edificando uma espécie de confiança na expectativa e na própria história em si, quase como se fosse impossível nos defraudarem com o levantamento do véu, com a solução daquele quebra-cabeças, cada vez menos importante. Isto porque o deleite visual, sonoro e interpretativo é constante, atingindo mesmo patamares de rara imprevisibilidade, diversidade e originalidade. Tudo se constrói, física e psicologicamente, de forma surpreendente e por demais virtuosa, pelo que se compreende que às tantas já estamos divididos num equilíbrio entre o prazer de assistir a tão belas sequências e entre tentar desvendar o propósito deste jogo, digamos.

Talvez já não interesse se o final é de ficar de boca aberta, talvez o que importe mesmo é a reflexão e as sub-camadas de um puzzle que se encaixa diante de nós. O interessante, para além da inequívoca qualidade dos efeitos narrativos, está no reflexo e na força com que somos atingidos por eles mesmos, pela mensagem central e marginal, ou pelos temas de ódio, maldade, compaixão, lembrança e esquecimento. O passado estará sempre na mesma balança que o futuro, numa espécie de peso ideal, e a esperança é tão necessária quanto a verdade e a culpa dos actos praticados.


Destaque para a montagem de toda a película, provavelmente o factor decisivo, unificador e de classe para a excelência do projecto final, bem como de uma cena em particular, o plano-sequência da luta entre o personagem principal e uns quantos (muitos) adversários, em que a câmara assume vontade própria, desenhando e programando a acção num estilo impróprio e em ângulos, no mínimo, irreverentes e audazes, e no máximo, de uma criatividade, capacidade e versatilidade imensas. Um exímio exercício, de um formalismo e confluência de géneros assaz inovadores. O grafismo e algumas técnicas em câmara lenta são igualmente muito bem utilizados e enquadrados na intensa narrativa, neste exemplo mas de um modo geral.

Grande parte das cenas são ainda, aliás, de uma ambiguidade desarmante e, não menos, inquietante. Detentoras, por vezes e em simultâneo, de uma contenção e brutalidade sem precedentes. Para isso a fotografia e toda a atmosfera do filme estão à altura, a condizer e a respirar entre si e ainda adequadas aos níveis de emoção presentes. Tal como a banda sonora realça e sublinha parágrafos certeiros do guião. Então os momentos finais são qualquer coisa de irreal, de tão poderosos, simples e aflitivos que se tornam, confirmando e arquivando este Oldboy como uma peça de arte em bruto, de um grau de perfeição ímpar.

"Your gravest mistake wasn't failing to find the answer. You can't find the right answer if you ask the wrong questions."
Woo-jin Lee


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

16.10.12

Dersu Uzala (1975)

Dersu Uzala - a Águia da Estepe, Akira Kurosawa


Filme riquíssimo na mensagem, na narrativa, naquilo de que talvez o cinema mais precisa hoje em dia – verdade. Essa verdade é-nos dada através de Dersu Uzala, personagem que dá título ao filme, um homem de idade avançada e de estatura diminuta que vive da e para a natureza, que se movimenta como se da própria estrutura elementar da mesma fizesse parte, o que na realidade até faz. Todo o ser-humano é parte integrante e insignificante de um todo, em perfeita comunhão com o primitivo e selvagem. Dersu é por isso uma personificação de um estado antigo, de uma vivência pré-temporal nostálgica, sábia e experienciada. Tal como ele próprio, com a sua humildade, está constantemente a evidenciar perante a arrogância e ignorância do exército russo e do seu oficial, recém chegados. Facto que este último acaba por perceber passando de imediato a admirar, contrariando assim a tendência, ao ponto de erguer uma amizade sem precedentes e começá-lo a seguir cegamente pelos meandros do desconhecido e da aventura.

Ás tantas, e lá mais para o fim, a situação inverte-se, invertendo-se também o espaço (e o tempo) para os dois protagonistas. A amizade conquistada fortalece-se, mas as motivações, os medos, os prazeres e a rotina trocam de lado e adensam-se, inevitavelmente. Surgem então as dificuldades onde antes residiam apenas facilidades (e vice-versa), demasiado evidentes e desconfortáveis, tão fortes quanto a dureza da personalidade em si, ou tão rígidas quanto a inflexibilidade do orgulho. Tudo se resumirá às mais pequenas e pertinentes questões: estará  Dersu, um homem que respira a floresta e o campo como se de oxigénio se tratasse, preparado para enfrentar o meio Urbano, o meio onde o ambiente é mecanizado, formatado e contido? Ou alguma vez conseguirá um cidadão (como o oficial russo) assimilar tamanho conhecimento e destreza humanas no acto de sobrevivência e subsistência no meio selvagem? As respostas não são simples, nem tão pouco conclusivas perante o que assistimos. Bem patente, no entanto, revela-se a pequenez humana perante a magnitude das paisagens, sobretudo, a selvagem, a mais verdadeira, aquela a que Dersu faz parte e a que o oficial russo (e nós) nos apercebemos como mais poderosa e essencial (ainda com tanto por desvendar).

Trata-se, pois, de um exercício narrativo e didáctico tremendo e muito bem escrito. Kurosawa, num estilo mais poético do que o habitual, conta-nos uma história de amizade, de partilha e de bom-senso, mas acima de tudo, remete-nos para o valor unitário do ser-humano inserido numa escala desmesuradamente superior. É neste contexto que o cineasta também nos conduz para o significado do tempo e da vida, tão efémera quanto a memória dos que cá ficam, dos que se lembram. Valores estes que depois são (re)tratados na sua maioria à distância, em magníficos planos gerais perfeitamente enquadrados sempre com as duas personagens (humanas e naturais), como se nunca tirasse partido apenas de um detalhe, ou da folha da árvore ou do rosto do homem, antes nos mostrando (e não sensibilizando) os acontecimentos, única e exclusivamente. Toda essa imponência fílmica e narrativa nunca é, nessa medida, desviada, nunca se desvirtua, porque invariavelmente aponta ao essencial e logo à profundidade que temas deste calibre requerem.


Soberba ainda a fotografia que completa o quadro e nos brinda com contrastes e luminosidades de paisagens absolutamente deslumbrantes. E se por um lado se pode dizer que este é um filme sobre a natureza, sobre a dualidade entre o natural e o artificial e sobre a noção de escala entre o Homem e o meio-ambiente, por outro, é acima de tudo um filme que nos transporta para a autenticidade e para a amizade na relação entre os seres-humanos, no caso de duas pessoas tão diferentes social e culturalmente, o que é extraordinário e simplesmente maravilhoso.

"How can man live in a box?"

Crítica nomeada em 'Melhor Crítica de Cinema' nos TCN Blog Awards 2012


Jorge Teixeira
classificação: 9/10

6.10.12

Full Metal Jacket (1987)

Nascido para Matar, Stanley Kubrick


Tudo na guerra é ridículo, é estapafúrdio, desde a fase de recrutamento em que se transformam homens singulares e conscientes em máquinas vulgares e básicas, até à fase da acção, do confronto bélico entre nações e entre seres ética e moralmente iguais. Kubrick condena isso, e com este filme tenta-o demonstar, talvez como nunca - a estupidez de todo este processo de matar e destruir a natureza e a própria humanidade.

O filme divide-se em duas partes, sendo a primeira a tal do recrutamento, em que os soldados são preparados e treinados para encarar o que se seguirá como inevitável e essencial. O homem desfigurado num monstro, num ser sem consciência e sem identidade. Na prática, é induzido a agir como se de uma criança se tratasse - nasceste para matar e para evitares seres morto, mas terás de ter fé para sobreviveres (passe o ironismo e a contradição), unicamente para continuares, outra vez, a matar. Portanto, a cruz, levada ao peito, é o veículo para não perder a esperança de forma a alcançar a tão desejada paz, tal como o capacete, no qual está escrito "born to kill", é o chamariz e a motivação para matar sem dó nem piedade. Mais incongruente que isto não sei o que será, de tão grave e ingénuo que é. Daí a infantilidade imposta e apre(e)ndida ferverosamente na fase de recruta, às custas de muito treino e disciplina (des-educação).


Numa segunda parte, seguimos os soldados já inseridos na acção, imersos nas tácticas e técnicas da guerra. Todo o vocabulário e o comportamento é, pois, ponto assente, está assimilado. O inimigo é o objectivo e o alvo a atingir, assim como o companheiro do lado é sagrado, é a única réstia de amizade, de valores e de humanidade que existe dentro de tais monstros. Pode-se brincar, desanuviar e até cantar, mas o cenário é de destruição, de fogo, e por isso nunca esquecível. 

Este mundo é, senão, terrivelmente simples, quais crianças - ou se está a matar, ou se está a conviver com os camaradas, ás vezes as duas coisas em simultâneo, mas sempre em convivência uma com a outra, como se ambas se pudessem sequer conjugar. Não há aqui, apesar de tudo, grandes responsabilidades, porque essas vêm de cima, das autoridades que controlam e manipulam estes verdadeiros peões no campo de batalha.


O drama é, deste modo, procurado e eficazmente transmitido, mas de forma algo satírica. Kubrick é exímio nesse retrato hilariante e nessa capacidade espirituosa de fugir a qualquer tipo de estrutura tipificada e clicherizada do sub-género (à data tão recorrente). Nesse sentido, a abordagem é invulgar, sendo a câmera interventiva e incisiva ocasionalmente, como se ela própria procurasse os segredos e as vergonhas por revelar, aqueles cadáveres que ninguém se quer lembrar, mas que estão lá, que aconteceram (o final da primeira parte alude a isso mesmo). Ainda no encalço da câmera se obtém alguns enquadramentos destacáveis, na evidência do seu propósito, dando a sensação que o realizador quer, de vez em quando e em pontos-chave, gravar-nos determinada ideia ou ilação sob um contexto perfeitamente delineado e assimilado.

Há cenas, igualmente, de absorver de tão marcantes que são (como aquela em que vemos os próprios soldados a filmar e a distribuir papéis uns aos outros em pleno tiroteio e ao som da faixa "Surfin' Bird"). Estas, invariavelmente, estão muito bem acompanhadas, seja ao som da excelente banda-sonora seleccionada, seja ao som de todo o ambiente recolhido e trabalhado, na alternância rítmica e ponderada entre ruídos e silêncios. Daí que a acção e o seu protagonista (que vai variando), assumem o controle total cena após cena, que por meio da realização, sobretudo dos travellings (estilo videojogo), nos vão induzindo para dentro das tácticas e das emoções, ao ponto de nos apercebermos da irrelevância e do absurdo de tudo isto, de toda a guerra em si. E é desta forma que Stanley Kubrick fornece a sua visão, exemplificada, neste caso, no Vietname, mas acima de tudo, na nossa consciência.

"I wanted to see exotic Vietnam... the crown jewel of Southeast Asia. I wanted to meet interesting and stimulating people of an ancient culture... and kill them."
Private Joker


Jorge Teixeira
classificação: 9/10