Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Obrigado, David, pela colaboração.
Caminho Largo: Em geral o que é para ti um bom filme? Ou depende de demasiados factores?
David Furtado: Para mim, um bom filme é um filme que me toca. E isso depende de vários fatores. Pode ser o enredo, que às vezes não está diretamente relacionado com a nossa experiência, mas que nos toca porque nos identificamos com parte dele. E isso pode ser porque o realizador universalizou a experiência. Um exemplo: Doze Homens em Fúria. Nunca fui jurado, pouco ou nada percebo de arquitetura ou leis, mas as questões sobre Justiça levantadas pelo filme são intemporais. Noutros casos, o filme pode nem ser “bom”, mas revemo-nos nos personagens e no que eles vivem no ecrã.
Também acontece que um bom filme não tenha desempenhos propriamente geniais. Como Profondo Rosso, para mim, a obra-prima de Dario Argento. Aqui o importante é a história, o modo como é filmado, e como tudo está construído e mexe com o subconsciente.
Outro caso é um mau filme com excelentes desempenhos. Hitchcock, a meu ver, é um mau filme, mas tem boas atuações de Anthony Hopkins e Helen Mirren. Esta última e, por exemplo, Theresa Russell fizeram maus filmes, mas mesmo maus. E, no entanto, acho que os salvaram, em parte.
Os bons filmes tendem a ser originais em todos os campos. No fundo, acaba por ser um diamante com as faces lapidadas. Às vezes, brilha mais uma do que as outras. Quando quase todas brilham, estamos perante uma obra-prima.
CL: O cinema tem de se debruçar sempre apenas e só sobre realidades ou a utopia pode ser explorada?
DF: Claro que a utopia pode e deve ser explorada. Se fossem só realidades, ninguém aguentava. Há coisas utópicas como Chuck Norris a matar 520 pessoas sozinho… e gosto muito de ficção científica. Por exemplo, um dos meus favoritos é Silent Running, em que toda a flora se extinguiu na Terra, e o que resta é mantido numa estufa, a bordo de uma nave espacial. Será isto assim tão utópico? Podia parecer em 1972, mas é para aí que caminhamos em 2013. De uma forma mais direta, acho que não há limites para a imaginação.
CL: As novas tecnologias devem ou não servir a sétima arte? Desde a cor e o som até ao 3D quais é que foram as mais bem sucedidas ou as mais decisivas?
DF: Acho que devem. A cor, o som e a alta definição são muito bem-vindos, depois do que muitos de nós tiveram de assistir em VHS ou com uma imagem terrível. Regra geral, não gosto de CGI, porque é usada em excesso. Dando um exemplo, para quem nunca tocou guitarra elétrica: Se a ligares através de efeitos e os puseres todos no máximo, aquilo soa a tudo menos a uma guitarra. A um OVNI, talvez ou a motores de avião.
Portanto, o mal não está na tecnologia em si, mas no modo como se emprega. Quando há muita pirotecnia, explosões e figurantes saídos de um computador, distrai. Não me consigo concentrar num filme desses. Por muito tosco que seja o Tron, a sequela é ridícula. Noutros casos, é a montagem. A Mighty Heart (2007) tem uma montagem execrável, o que é lamentável porque a história é razoável, Angelina Jolie, apesar de eu não a apreciar particularmente, tem excelentes momentos… e dei por mim a contar os segundos que durava cada plano. Um, dois, três segundos. Quatro já era muito. Resultado: Não vi até ao fim.
As novas tecnologias pretendem auxiliar o ser humano em todas as áreas, não escravizá-lo. E não são a resposta para todos os problemas da Humanidade. A maioria das pessoas tem tendência a usá-las mal. Acho que mais esforços deviam ser dedicados a encontrar uma cura para o cancro ou a SIDA do que em desenvolver parvoíces como a 3D e outros artefactos que não passam de um símbolo de status e uma praga… que infelizmente já contagiou Hollywood, com remakes, re-remakes, Lincoln a caçar vampiros e Brad Pitt a livrar o mundo de zombies. Acho que agora vem aí um remake de The Wizard of Oz (1939)... perderam a noção do ridículo.
CL: Cultura, lazer e cinema. Em que medida os três conceitos estão associados e entrelaçados?
DF: Podem surgir associados ou separados. Nunca achei que o cinema fosse um mero entretenimento, mas pode ser. Um filme com grande nível de entretenimento como Os Salteadores da Arca Perdida (e também um bom filme, segundo o meu padrão pessoal) também é lazer. E cultura. É o exemplo de como um filme se infiltrou na nossa cultura. E sejamos frontais, quem não adora o Indiana Jones?…
Um filme de Ingmar Bergman, como Persona, pode ser muito enfadonho. Mas o seu significado cultural e artístico é inegável, mesmo para quem saiba pouco sobre Bergman, como é o meu caso. Só posso dizer que gostei muito desse filme.
CL: Comenta a seguinte citação do realizador John Cassavetes: "O cinema é uma investigação sobre as nossas vidas. Sobre o que somos. Sobre as nossas responsabilidades, se houver. Sobre o que estamos procurando. Por que eu iria querer fazer um filme sobre algo que eu já conheço e compreendo?"
DF: Tinhas de pegar por John Cassavetes… já demonstrei a minha admiração por ele no Caminho Largo. É o realizador sobre o qual mais escrevi, vi todos os filmes realizados por ele, quase todos os papéis enquanto ator, inclusive em TV, li uma data de livros, vi inúmeros documentários… É uma exceção. Para ele, não fazia grande sentido trabalhar sem aprender com a experiência. E queria divertir-se. Queria até “encontrar uma revelação”, segundo Scorsese.
Por isso, dou-te um caso concreto, o Faces. Começou por querer criticar as pessoas e o status quo, mas ao filmar, começou a perceber que as pessoas que ele pretendia criticar e que eram cruéis para os outros, deviam sofrer imenso para terem o impulso de torturar os que os rodeavam. Assim, modificou um pouco o filme e o seu ponto de vista mudou. E talvez por isso Faces esteja lá no topo, juntamente com Citizen Kane (ou seja lá qual for o “melhor filme de sempre”) no “panteão” das obras-primas, apesar de não ser o meu filme favorito dele.
Cassavetes funcionava de modo totalmente diferente da maioria dos realizadores, e é uma fonte de inspiração para muitos. E não é por acaso. Até para mim, que não sou realizador nem tenho essas ambições. Também eu tento sempre conhecer e compreender melhor filmes ou aquilo que procuro, fazendo toda essa investigação, no que escrevo. Quando às vezes dizem, “aprendi muito sobre este filme, não sabia nada disto”, agradeço, claro. Mas também eu aprendi, sobre o filme e sobre mim, talvez. Portanto, compreendo bem o que ele quis dizer.
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