Herói, Yimou Zhang
Num filme em que o estilo e a forma dizem muito, é a poesia que mais se destaca. É na mesma que se limam as arestas e se articulam os contornos formais de todo o processo criativo que é este Hero. A começar pelo encaixe visual do diálogo com o guarda-roupa, passando pela junção entre música e cor, para acabar na simbiose entre a acção e o som ambiente. Uma obra exemplar nesta sua capacidade de harmonizar diversos departamentos.
Com clara influência em Rashômon (e Yojimbo, se atendermos à personagem de Jet Li) de Akira Kurosawa, Yimou Zhang preocupou-se neste filme, sobretudo, em nos contar uma história, uma visão sobre diversos pontos de vista, que se vai construindo a ela própria, ou se vai aperfeiçoando detalhadamente à medida que avança e recua na transcrição dos acontecimentos. Cada personagem, nesta conjugação de pequenas histórias, assume uma importância tal que o seu protagonismo é extrapolado para fora do ecrã em inesgotáveis interpretações e inestimáveis transfigurações, ao ponto de nos gravar sentimentos ou pessoas e não situações. Honra, lealdade, amor, traição e sacrifício são alguns dos valores e motivações pessoais abordados e explorados na trama ou no novelo que, teimosamente, se afigura diante de nós, uma e outra vez.
A narrativa é, então, interpretada em diversas ocasiões e em constantes retrocessos ao passado, na intersecção de vários capítulos endereçados a cada um dos personagens principais, aqueles que fazem parte do núcleo e, no fim de contas, do propósito do enredo. A cada nova investida pela memória e por cenas já visitadas, novo ponto de vista, que é como quem diz, nova oportunidade de explorar as cores, os contrastes, as texturas, os movimentos e as emoções presentes ao longo das cenas e da própria mise-en-scène, talhada como nunca. Tremenda esta capacidade de reciclar ambientes e atmosferas com o mesmo vigor e sempre de forma refrescante e recompensatória.
Temos ainda, para além deste formalismo na fotografia, cenografia e guarda-roupa, confrontos de rara beleza, ou por outras palavras, acção e bailados exuberantemente coreografados segundo o cenário e o contexto presentes, e segundo o som da natureza e a alma dos intervenientes. A música, por outro lado, também interfere e se enquadra no conjunto, pelo que estes êxtases, por assim dizer e por aquilo que representam, acabam por culminar poeticamente um brilhante trabalho de realização e de argumento, sendo eles próprios um verdadeiro triunfo na arte de oferecer visual e narrativamente Cinema.
Pode-se dizer que o filme tem um potencial e uma capacidade em nos surpreender enormes, talvez exageradas mesmo, na medida em que assistimos, por vezes, ao absurdo e ao inverosímil. Mas não será esse exagero legítimo, e, sobretudo, único e característico o suficiente para nos abstermos de uma suposta credibilidade (des)necessária? Para mais vindo de um autor que incute tamanha audácia e risco, tanto na harmonia como na fruição entre uma visão (ou visões) e uma estética (ou estéticas) indistinguíveis. E isto porque, de facto, existe uma constante variedade na filmagem e na posição que a câmera assume em determinados momentos, ora de modo subjectivo e terreno, ora de forma totalmente objectiva e aérea, quase que induzindo os movimentos e os pensamentos envolvidos. Há, digamos, como que uma corrente artística que recebe e une diversas estéticas ou formas de apelar às emoções, que catapulta o resultado final para outra dimensão, literalmente.
Confluindo elementos como a água, o vento, o sol e as árvores, Herói se assume como uma combinação de ambiências e de sensações, partilhando com isso diversos campos ou panoramas, desde a montanha ao lago, ou da floresta ao deserto. Uma autêntica sincronia e espectáculo visuais, que vive essencialmente da imagem e da profundidade dos seus personagens. Numa palavra, magnífico.
★★★★★★★★★★
Jorge Teixeira
Jorge Teixeira
classificação: 10/10
links: IMDb, FilmAffinity, ICheckMovies, MUBI