13.7.13

À Boleia (1)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Nuno Reis, autor do blogue Antestreia.
Obrigado, Nuno, pela colaboração.

Caminho Largo: Estruturalmente como aprecias e como avalias um filme?

Nuno Reis: Essencialmente, tento ser um espectador. Exigente, mas um espectador. Gosto de me sentar num lugar à distância certa (75 a 30%), aproximadamente a meio do ecrã, e deixar a mente perder-se durante duas horas. Isso raramente acontece. Ou estou a ver um filme com actores que conheço e de cineastas que acompanho, o que leva a comparações, ou estou a ver algo de uma cinematografia que desconheço e tenho de aprender a linguagem. O meio-termo é raro.
Posso “desligar” o modo espectador e ser apenas crítico. Por exemplo, ver a comédia do momento sem rir é algo muito fácil que vou praticando uma ou duas vezes por ano. O contrário é que é mais difícil. Se algum filme me fizer esquecer o crítico em mim. é garantido que o vou rever brevemente. Porque me fez sentir livre.
Ao longo do filme vou reparando em pequenas coisas - opções de iluminação, ângulo do plano, referência/homenagem a outros filmes - mas o essencial é como me sinto ao longo do filme. E se acho que um segundo visionamento terá o mesmo efeito. Ou o que pensaria se o tivesse visto mais jovem. Ou se quando for mais velho o compreenderei de outra forma. Tento pensar em todas as condicionantes de ver o filme (idade, estado do espírito  hora do dia, companhia, festival/sala comercial) de forma a encontrar a melhor forma de o ver. É com base no seu máximo potencial (não confundir com o público-alvo) que dou a nota.
Nessa nota sou tradicionalmente generoso. Sei o trabalho que dá fazer um filme e perdoo coisas menos conseguidas. Hoje em dia uso um sistema que considero adequado e que se assemelha a uma Curva de Gauss, com muitos filmes nas notas médias que vão rareado até às notas extremas.

CL: Fotografia, banda-sonora e interpretações estão no mesmo patamar que a realização ou o argumento? Qual a importância e o potencial das primeiras para o resultado final?

NR: Há casos e casos. Numa curta dou muito valor à selecção musical porque não cabem mais de duas ou três musicas e terão de ser muito bem escolhidas. Nas longas, é mais difícil fazer essa análise porque há mais cenas, o que levará a mais músicas. Se alguma for pior, como ainda há tempo para melhorias posso “deixar passar”.
Quanto ao efeito da música, vejo-a como o melhor marketing porque é uma versão muito portátil do filme. Não precisamos de uma sala escura e 100 minutos de sossego. Ouvimos em qualquer lugar com uns auscultadores e demora menos de cinco minutos. Destaco o caso da "Belle Nuit" de Offenbach. Conhecia-a, mas depois de ver “La Vita è Bella” não a consigo ouvir sem ficar com enorme vontade de ver o filme. O mesmo se aplica a imensos musicais e é notório nos bons anúncios. Contudo, quando uma música ganha autonomia em relação ao filme e a ouvimos sabendo que é do filme, mas não temos vontade de o rever, é porque o filme não esteve à altura da composição. Se o filme é bom a música o supera, também aí foi mal escolhida.
A realização, as interpretações e mesmo a fotografia, vivem mais de alguns grandes momentos do que de um trabalho contínuo. Não há um filme que seja perfeito a cada frame, tem é de deixar o máximo de cenas impressas na memória de quem assiste. Se não forem más, é esperar que melhore ao longo do filme. Também o argumento, a não ser que seja francamente mau, só posso avaliar devidamente no final.
Sintetizando com o caso mais simples: nos mercados do filme, onde há uma oferta imensa, ver má fotografia, som, ou interpretações/diálogos, basta para me fazer desistir desse filme e avançar para a próxima sala.

CL: Onde e de que modo se deverá encaixar a nostalgia e o prazer pessoal na apreciação crítica e subjectiva de um filme?

NR: Numa entrevista que fiz em Junho a Joe Dante, perguntei-lhe o que teve a década de 1980 para ter sido a década de ouro do cinema fantástico. O que retive da resposta dele foi que a década de ouro tinha sido a de 1950. Alguém que conviveu com a fina flor do cinema dos 80, dizer que o cinema fantástico tinha sido trinta anos antes, faz-nos pensar. E nota-se que cada geração tem a sua preferência.
Quando vemos os filmes em determinada idade eles têm um efeito único. Cada geração terá os seus preferidos, claro. Sejam os filmes animados que vimos em pequenos, ou a pérola que nos fez amar o cinema, terão sempre um lugar especial no nosso coração. Ao vermos um filme que nos diz algo pessoal podemos tentar ser racionais, mas o sentimento tem de falar sempre mais alto. Alguém que ponha de lado o que o filme lhe diz, para falar friamente sobre estética, não percebe nada de arte. Só se pode confiar num crítico quando ele está disposto a abrir o coração e a explicar a magia que sente. Sem isso, todas as críticas são ocas e incompletas. Não valem o tempo que se perde a lê-las.
Claro que há filmes que não dizem nada a ninguém (por vezes nem aos intervenientes). Mas um bom filme, um que mereça ser visto, teve de ser especial para alguém. Teve de levar alguém a querer expor a própria alma no texto, como num auto-retrato de Dorian Grey.
Quanto ao prazer pessoal, penso sempre que a honestidade deve estar patente nos textos. Em caso de amnésia total, quero, ao ler os meus textos, redescobrir os filmes que me moldaram. Reconstruir quem sou com base no que me tornou assim. 

CL: O cinema sempre esteve atento a novos recursos ou a novas tecnologias. Do som ao 3D, quais te parecem ter sido as mais cruciais para a evolução da sétima arte?

NR: Uma vez ouvi dizer que o som chegou uma década mais cedo do que devia. O cinema estava numa idade de ouro até que apareceu uma novidade que o levou num novo rumo antes de atingir o seu pico. O mesmo com a cor e com o 3D do século XXI. Os novos atributos desvalorizaram a arte em benefício do espectáculo sensorial. Tal como os interesses financeiros estão a prejudicar a arte de contar histórias. Dão demasiadas possibilidades a uma criança que ainda estava deslumbrada com a anterior.
A grande descoberta foi a câmara de filmar, a capacidade de capturar imagens em movimento. Depois foram chegando melhorias, como a mobilidade da câmara, a autonomia energética, o acesso económico à tecnologia... Mas são meras melhorias.
Quanto à exibição, desde os Nickelodeons e cinemas itinerantes, até aos Blu-ray e streaming, acho fundamental que o cinema esteja a chegar a toda a gente. Só vendo bom cinema acreditamos que o podemos fazer. Só vendo mau cinema sabemos que podemos fazer melhor. E assim criam-se novos artistas, com novas formas de filmar e de contar histórias.
A Internet, com sites especializados de cinema, salas de discussão, possibilidade de ver e partilhar vídeos, está a dar uma preciosa (mas traiçoeira) ajuda. Com tanta oferta será sempre preciso filtrar, mas é melhor ter a mais do que a menos.
E finalmente, tenho de voltar a referir a combinação com o mundo digital. Tornou a produção, a gravação, a edição, o armazenamento e a distribuição tão fáceis, que é inacreditável. O cinema está a perder a sua essência, mas está a ganhar uma força tremenda que, a ser bem usada, vai mudar o mundo.
Hoje em dia o difícil é escolher. É preciso ver todas as componentes como acessórios. Podem existir, desde que haja alguém capaz de ver que não precisa de usar todos os ingredientes para fazer um filme. Podem cortar na cor, no som ou nos actores - sou defensor que se mantenham as moving pictures, embora alguns cortem mesmo no movimento ou na imagem - para fazer o filme perfeito, seja em duas ou quatro dimensões, num super 8 ou a 8K, a 24 ou a 60 frames por segundo. Tudo é cinema.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Alfred Hitchcock: "O diálogo deve ser simplesmente um som, entre outros sons, apenas algo que sai da boca de pessoas cujos olhos contam a história em termos visuais."

NR: Nessa entrevista o Mestre repetiu-se, de forma menos poética, dizendo que os filmes mudos eram a forma mais pura do cinema. Para ele o fundamental era que a imagem transmitisse todo o conteúdo.
Sendo um homem que se movia no terror, não admira que tenha dado especial importância às sensações visuais e sonoras em detrimento dos diálogos. Nas cenas mais icónicas de “Psycho”, de “The Birds”, ou muitos outros, o que mais nos assusta é o que é visto pelos olhos das personagens. Não há aqui acontecimentos fora do ecrã ou paranormais. O que conta tem de ser visto e estar diante dos nossos olhos. Quando algo sai do nosso campo de visão, deixa-nos malucos, que o digam Iris Handerson ou L. B. Jeffries. Haverá excepções como em “The Lodger” e “Shadow of a Doubt”, onde realmente brinca com a mera expectativa de um potencial assassino, mas, de forma geral, Hitchcock gosta de manter tudo às claras.
Gosto dessa forma de pensar. Escondido atrás da porta, qualquer um consegue assustar. Só quem for um bom contador de histórias consegue estar à nossa frente e ter o mesmo efeito. Quem é bom e mesmo assim se esconde, pode causar problemas cardíacos.

2 comentários:

  1. Gostei de ler, especialmente a parte do Joe Dante :D

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  2. O NARRADOR SUBJECTIVO, Eu gostei de toda a entrevista no geral. Posso dizer que aprendi, aprende-se sempre, com as respostas, e isso por si só já cumpre o objectivo da rubrica.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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