15.1.14

À Boleia (15)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Axel Ferreira, autor do blogue Por Natureza Morta.
Obrigado, Axel, pela colaboração.

Caminho Largo: O modo como abordas um filme depende de algum conceito à priori estabelecido ou a avaliação incide somente naquilo que o filme é ou como o mesmo se define automática e singularmente? A crítica é indissociável do filme?

Axel Ferreira: A pergunta afigura-se interessante, mas a resposta pode-se afigurar demasiado grande para a intenção. Todos os filmes têm um preconceito associado, isto porque muito raramente se vê filmes ao acaso e, quando se faz isso, normalmente existe um arrependimento posterior. Portanto existe sim um preconceito antes do filme, existe sempre, mas para mim este deve acabar no momento em que o próprio filme começa. Mesmo assim, esta espécie de dissociação gnosiológica é muito difícil de atingir, ainda para mais se tivermos algum conhecimento adicional sobre o próprio enredo. Por isso tenho uma aversão a ver trailers, que têm a fantástica capacidade de já estarem a classificar e a digerir o próprio filme por ti. Portanto, sim, cada filme se deve definir por si na sua totalidade e assim o tento fazer, apesar de isso ser quase impossível.
No mesmo esquema de pensamento, a crítica, no particular (dada por mim ou por seja quem for), pode e deve ser dissociada do filme, pelo menos se tivermos intenção de o visionar (se não o fizermos ficamos inevitavelmente apenas com o preconceito). Por isso também tenho uma aversão a chavões que normalmente se ditam segundo o famoso “como já era de esperar…”. Já no aspeto geral da questão, a crítica, desta vez a de cada um, não pode ser dissociada do filme, a opinião após o sujeito se tornar cognoscente é inevitável. Não se me afigura possível uma abstração tal que separe o filme de nós próprios até porque tudo o que percecionamos está associado a uma sensação. Na minha experiência pessoal apercebi-me que não gosto de ler críticas e interpretações de filmes, por duas razões, a primeira será a de normalmente discordar e a segunda será por tentativa de abstração máxima de ideias pré-concebidas (mesmo que seja já após o seu visionamento). Por isso também tento não o fazer quando escrevo, apenas tento explicar a minha perspetiva sobre os conceitos gerais da própria arte, apesar de já ter acontecido, uma ou duas vezes, de não o conseguir evitar.

CL: Para efeitos de qualidade, que mecanismos e linguagens no seu todo tem a mais a realização em detrimento do argumento cinematográfico? De que forma a montagem interfere nesta dualidade?

AF: Explicando de novo em duas partes, afigura-se-me como regra que um argumento cinematográfico mau significa um vazio de conteúdo para o filme, isto se considerarmos que o argumento inclui toda a mise en scène, o que raramente é o caso. E, não sendo o caso, a mestria do realizador pode influenciar todas as perspetivas e tornar algo banal em algo muito pouco óbvio (mas claro que no sentido teórico da ideia, ao fazê-lo, o realizador está a mudar o próprio argumento mesmo que seja apenas por mudança de intenção). Até a edição, ou montagem do filme, para inovar terá de alterar o argumento, pode-o fazer tanto quase na sua totalidade (como no caso de Annie Hall) como apenas para adicionar efeito de confusão e estranheza (retirando a tal banalidade de algo que se assemelha ao comum, como aconteceu com Memento). No sentido contrário também se me afigura óbvio que um bom argumento pode ser destruído pela banalidade do realizador (como é o caso de Steven Spielberg com Minority Report ou A. I. ou muitos outros).
A linguagem é característica de cada um dos realizadores, ela deve ser o mais original possível, e neste sentido a originalidade impõe-se quase como algo absoluto. A perspetiva e a edição, que é indissociável da linguagem do realizador (apesar de os estúdios de cinema insistirem em destruir esta ideia), são as que transmitem a sensação que acompanha a perceção dos acontecimentos. Sendo um filme uma experiência sensorial, a linguagem representa quase tudo. Ressalvando, no entanto, como acima dito, que o argumento mau torna o filme em algo vazio. Percebe-se também que para cada tipo de realização os eventos do filme têm de ser determinados pela intenção. Particularizando, ninguém imagina Blade Runner a acabar com os replicants, na apoteose final, a serem mortos por Decker a tiro de pistola. Esvaziaria o filme de quase todo o seu significado.

CL: Como poderá actualmente o cinema equilibrar e melhorar a sua veiculação e transmissão de valores transversais à cultura e à educação de um povo? Exemplifica.

AF: Não pode.
O cinema não é um meio educativo, ele não pode transmitir nada que não esteja já presente. Ele não adiciona, apenas multiplica. Sendo o cinema uma arte final, no sentido em que é uma mistura de artes visuais, sonoras e escritas que exige um conhecimento prévio de qualquer uma delas. Por muito que queiram, não há filme que torne o ato de leitura irrelevante, ou o ato de ouvir música irrelevante. Sendo uma experiência sensorial curta apenas transmitem uma interpretação (a algo que normalmente já devemos entender a priori). As interpretações são interessantes mas não ensinam a interpretar, muitas vezes fazem o contrário. O utilizador pouco avisado usa o cinema como um meio para esvaziar a mente de toda a reflexão, muito mais isto acontece quando esta mente se encontra já vazia por si. O cinema pode ser até contraproducente neste aspeto, pelo menos nesta a tendência popular contemporânea. Isto porque estamos a falar de cinema e não de documentários.
Não existem filmes que nos façam refletir, na verdade apenas há filmes que nos fazem ter medo de uma ideia que já sabíamos existir, mas não queremos acreditar ser possível.
Como meio de cultura é um meio final, tal como é uma arte final. Estende perspetivas e por vezes horizontes, mas apenas a algo a que já somos recetivos. Existem certos filmes incompatíveis com certas pessoas, porque essas mesmas pessoas não são recetivas a esse tipo de informação.
A interpretação de Haneke sobre violência só pode ser válida para nós se entendermos que a origem da violência (seja a existência de algo inqualificável como o holocausto seja a existência massiva de tortura física e psicológica) é algo que tem de ser questionado e continua a não ser óbvio. Precisamos de ter uma curiosidade e uma introspeção pessoal que só é dada pela informação e a reflexão sobre ela. O cinema não é nem deve ser informação.
Se o cinema transmite valores morais o único que vai fazer é o impedimento da formação de valores éticos.

CL: Tendo em conta a sua origem, o seu crescimento e a sua sobrevivência, a saúde da sétima arte necessita da inclusão do entretenimento? De que forma?

AF: Não. Em termos económicos os filmes de entretenimento não ajudam em absolutamente nada à sobrevivência do cinema como arte, normalmente apenas o prejudicam. Mais do que isso criam uma espécie de resistência nas pessoas ao cinema feito com intenção de arte. Numa Era em que tudo é acessível o cinema de qualidade continua a ser cada vez menos popular. Existe até uma menor tolerância do público à experimentação cinematográfica e à experimentação de sensações novas, que é na verdade a base do cinema.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador David Cronenberg: "Há um ditado em arte que diz que para se ser universal deve-se ser específico. Penso que qualquer artista sente que está a lidar com coisas específicas, mas que elas têm significado universal."

AF: Concordo apesar de não apreciar terrivelmente o realizador. Até nos movimentos das artes que mais se separam da representação da realidade, como o surrealismo e o impressionismo (de maneiras muito diferentes), tudo começa no particular. Mas conseguir o significado universal é algo que necessita de mestria e poucas vezes é alcançado, até nas obras mais aceites nem sempre acontece.
Este conceito é moderno e levou até a uma obsessão com o significado. Sente-se até uma preocupação desmedida em tornar os eventos explicativos em si mesmos, como se se retirá-se o acaso da equação. Por isso acho tão apelativo o cinema japonês e coreano, onde a obsessão com o significado é muito menos patente.

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