26.9.13

À Boleia (9)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Luís Mendonça, autor do blogue CINEdrio e do site À pala de Walsh.
Obrigado, Luís, pela colaboração.

Caminho Largo: Genericamente e em abstracto o que é para ti a verdadeira essência de um filme?

Luís Mendonça: Não tendo uma resposta definitiva a essa questão - e talvez que nunca terei, até porque se calhar a verdadeira essência é não haver uma verdadeira essência -, penso que os primeiros mais perspicazes espectadores dos filmes dos Lumière souberam perceber que o extraordinário daqueles pequenos recortes de vida não estava na acção que se desenrolava em primeiro plano, mas ao fundo, em profundidade, no movimento das folhas da árvore ao vento. A essência do cinema seria, parafraseando Godard, tornar o invisível visível. E, pegando em Kracauer, diria que esse invisível "redimido" no ecrã poderia ser o tal vento que faz mexer as folhas da árvore como aquilo que não reparamos por nos ser demasiado próximo  - por exemplo, as pequenas coisas e gestos, privados ou públicos, que compõem o dia-a-dia de toda a gente... A essência do cinema reside, então, na capacidade, que comprovadamente tem, de nos dar a (re)ver o mundo que conhecemos numa distância permanentemente renovada, justa e "redimida".

CL: Há quem considere que a montagem é a única característica própria e única do cinema, e portanto, o factor determinante para a qualidade da obra final. Concordas? Em que sentido analisas a montagem num filme?

LM: Há, na tradição europeia pelo menos, uma inclinação para preferirmos a mise en scène ou o plano à montagem. Contudo, se pensarmos num cineasta como James Benning, à partida aquele que mais privilegia a duração do plano, estamos perante uma espécie de purificação da ideia de montagem, na medida em que a renúncia ao corte é, em si mesma, uma decisão de montagem. Ao mesmo tempo, podemos distinguir uma montagem horizontal (entre planos) de uma montagem vertical (entre os planos da acção, dentro do quadro). Portanto, a montagem é uma ferramenta estrutural no cinema, mas de modo algum está sujeita às ideias de elipse e de velocidade. Esta é a ideia falsa que tem sido potenciada pelas montagens hipertróficas da televisão, da publicidade, dos videoclipes e, hoje, da maior parte do cinema mainstream de Hollywood.

CL: É importante o aspecto autoral de um realizador? Mesmo que isso conduza à repetição de fórmulas e mecanismos (e filmes) que aparentemente, passe a qualidade, pouco trazem de novo à sua carreira e ao cinema?

LM: Se calhar também a repetição deveria ser parte dessa ideia de "o que é o cinema?" ou não teriam os próprios irmãos Lumière facilmente percebido, pouco tempo depois de inventarem o cinematógrafo, que o cinema era uma invenção sem futuro. Eles perceberam facilmente isso, mas estavam tão certos quanto errados. Certos, porque acharam que o cinema se tinha esgotado nos seus quadros - e, hoje, parece que de facto TUDO começa e acaba na estação de La Ciotat. Errados, porque o futuro da invenção cinema estava garantido pela sua capacidade infinita de se reinventar. A repetição é inevitável, mas saber repetir e fazer nascer dessa repetição uma identidade própria (uma variação, por muito ténue que seja, da gramática lumièriana-griffithiana), isso já é mais difícil e, quanto a mim, reside aí o principal desafio que se coloca a qualquer realizador com consciência do que está atrás de si - e do que pesa sobre os seus ombros... -, isto é, qualquer "autor".

CL: O cinema na televisão e o cinema em televisão. Pode-se dizer que existe, ou que já existiu, as duas situações? Em que medida?

LM: Tarantino diz que, com o digital, o cinema passou a ser uma forma de televisão em público. A imagem é feliz e terrível, mas talvez as duas linguagens estejam nesta altura preparadas para a "derradeira" fusão. Em tempo de grandes convergências multimediáticas, faz-se cinema como quem fazia televisão e faz-se televisão como quem fazia cinema. E estará errado quem se demitir de problematizar minimamente esta espécie de nova esquizofrenia (d)estrutural. Cineastas como Godard, Bergman e Fassbinder, filmando ora para o pequeno, ora para o grande ecrãs, aperceberam-se, antes de todos os outros possivelmente, destes caminhos que hoje percorremos. Se calhar as lamúrias de Soderbergh sobre o ter de passar o seu último filme na televisão não serão as lamúrias do Soderbergh de amanhã.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador John Ford: "Qualquer pessoa pode realizar um filme, assim que conhecer os fundamentos. Realizar não é um mistério, não é uma arte. O principal sobre realizar é: fotografar os olhos das pessoas."

LM: É uma excelente frase de John Ford que me lembra aquela de Sergio Leone, segunda a qual "o principal" é saber como fotografar o rabo de um cavalo. Ou aquela de Jodorowsky: "não faço filmes com os olhos, mas com os meus testículos". Ou seja, não sei se o principal está nos olhos das pessoas, no rabo dos cavalos ou nos testículos do Jodorowsky. De qualquer maneira, todos estes três realizadores procuram dessacralizar o "fazer cinema" (não há mistério), mas acabam consciente ou inconscientemente por mistificar/mitificar os seus resultados, os seus efeitos..., desde logo através do exemplo que os seus cinemas nos dão. Aliás, é desde já curioso como uma frase que afirma que "realizar não é um mistério" pode ser tão sedutoramente misteriosa. Nesse sentido, ela é quase uma metáfora perfeita de  todo o cinema de Ford.

2 comentários:

  1. A última resposta do Luis é uma grande resposta, tem muita graça.

    Roberto Simões
    CINEROAD
    cineroad.blogspot.com

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  2. ROBERTO SIMÕES, Também gostei (e sorri) bastante, no que constitui uma grande entrevista, deliciosa e interessantíssima. Fica aqui o meu testemunho público quanto à mesma.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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