9.9.13

À Boleia (7)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: David Lourenço, autor do blogue O Narrador Subjectivo.
Obrigado, David, pela colaboração.

Caminho Largo: No cômputo geral o que privilegias mais num filme tendo em conta uma avaliação final?

David Lourenço: Interesso-me por personagens contraditórias ou instáveis, que nos piores momentos são motivadas ou paralisadas pelas suas melhores memórias, filmes sobre fé, onde se sente o peso das dúvidas e das certezas, ou sobre violência, como uns lhe resistem e outros a utilizam, gosto de realismo mágico e de planos-sequência… mas não me perturba dar uma nota alta a um filme que não tenha nada a ver com isto, se for bom no que tenta fazer. É essencial perceber do que gostamos e procurá-lo, esse toque pessoal é que separa um bom filme de uma obra-prima, contudo também é correcto recompensar a competência por si só. Fazer uma avaliação do que quer que seja implica uma grande versatilidade de conhecimento e, assim, a única solução para perceber o contexto, referências e afins de um filme e ao mesmo tempo definirmos uma identidade enquanto espectadores e críticos é ver filmes – muitos filmes.

CL: Em que sentido os planos, os movimentos de câmera e toda a filmagem em si determina o resultado ou a montagem de um filme? A qualidade do mesmo está mais dependente destes aspectos ou do argumento inicial?

DL: Durante a filmagem, a visão do realizador condiciona indelevelmente a imagem, mas é na sala de montagem que o registo fílmico adquire o significado pretendido. A primeira fase é a produção de um puzzle, a segunda é a resolução do puzzle. Em 2012 estive numa palestra da Sylvie Landra, editora frequente dos filmes de Luc Besson, onde, entre outras coisas, ela analisou vários dos seus trabalhos, explorando, mais à frente, como o mesmo material pode ser manipulado para obter resultados diferentes, por isso, partindo do princípio de que o realizador tem uma ideia clara do que pretende, parece-me mais fácil atingi-la mantendo uma relação de proximidade com o editor do filme (como Scorsese) ou assumindo ele mesmo essa função (como os irmãos Coen). Quanto ao argumento, a influência parece-me ser residual quando comparando com a efectiva captura da imagem ou o arranjo das imagens capturadas.

CL: Tendo em conta a sua subsistência e pertinência, por onde deverá o cinema mais enveredar, por autores ou por uma indústria?

DL: O que pessoal como David Fincher ou Christopher Nolan prova é que o cinema mais comercial pode ter um cunho próprio, relevo estilístico ou o mínimo de profundidade. Por outro lado, há muitos supostos autores que se entretêm a mamar subsídios para dar corpo a ideias estapafúrdias, basta lembrar que vivemos no país em que os contribuintes pagaram mais de meio milhão de euros para João César Monteiro fazer um filme sem imagem. Acho que este paradigma está em extinção, porque há autores dentro da indústria e indústria à volta de autores independentes, veja-se como ainda no ano passado o Amour do Michael Haneke custou 6,5 milhões de euros e rendeu mais do dobro. Por outras palavras, a questão é cada vez mais unicamente financeira, logo a responsabilidade é do público, que, num mundo ideal, devia preferir cinema com forma e conteúdo esclarecidos, independentemente da escala ou orçamento, ao invés de escapismo superficial ou diarreia intelectual.

CL: Existirá algo de objectivo na interpretação e contemplação do objecto artístico? Em que perspectiva a subjectividade no cinema adquire contornos inquestionáveis através de listas ou referências sempre semelhantes?

DL: A intemporalidade de um filme, o seu impacto ou a eficácia com que todos os que nele trabalharam conseguem, em conjunto, atingir um determinado efeito, podem ser consensuais, e nessa perspectiva percebo, por exemplo, que Psycho, The Godfather ou Citizen Kane venham sempre à baila quando se fala dos melhores de sempre, mas nunca são unânimes, porque a arte respira subjectividade, caso contrário seria ciência. A única semelhança entre arte e ciência é o respeito pela dúvida, mas numa a dúvida é o fim, na outra é o ponto de partida. Do cinema quero algo que satisfaça a minha sensibilidade e que meta o meu cérebro a funcionar. Como ninguém é igual e os gostos discutem-se (sim, acabo de usar um ditado e inverter outro na mesma frase), penso que qualquer defesa ou crítica a um filme é questionável, simplesmente concordo com umas e discordo de outras. O mesmo serve para as listas – se eu fizer uma dos meus filmes preferidos espero que seja a minha imagem.

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Ingmar Bergman: "Filmes são sonhos, filmes são música. Nenhuma arte passa na nossa consciência da maneira que um filme passa, e vai directamente aos nossos sentimentos, mergulhando nos quartos escuros da nossa alma."

DL: Se houve alguém que percebia de quartos escuros foi o Bergman. Não há nada mais poderoso que uma imagem, é algo definitivo e, simultaneamente, passível de acordar as mais diferentes emoções em quem a vê.

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