27.11.13

À Boleia (12)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Rafael Santos, autor do blogue Memento mori.
Obrigado, Rafael, pela colaboração.

Caminho Largo: Como evidencias em geral a qualidade de um filme?

Rafael Santos: No geral, o argumento é o selo de apresentação do filme. É o aspecto que me leva ou não a aconselhar determinado visionamento. No decorrer da minha primeira viagem a uma obra, tento absorver a total essência do argumento. Os visionamentos seguintes complementam o meu olhar perante esse mesmo filme. Posso agora deliciar-me com as questões técnicas e as opções estéticas tomadas. Posso procurar as características que espelham o autor por detrás, tentando inserir essa obra nos parâmetros da sua filmografia.
Posso desfiar as várias camadas de significado. E aí reside a verdadeira qualidade. No facto do filme poder não ser finito tal qual o pacote de pipocas que teima em integrar a experiência cinematográfica. Se um filme é transcendente ao ponto de me fazer viajar na minha própria mente, poderei atribuir-lhe qualidade? A subjectividade actua.
A Clockwork Orange. 2001: A Space Odyssey. Persona. 2046. Synecdoche, New York. Kynodontas. Dogville. Solyaris. Zerkalo. Requiem for a dream. Inúmeros outros que poderiam aqui constar. Filmes que não terminam aquando dos créditos finais. Ao invés, reproduzem-se vezes e vezes sem conta com o auxílio da memória. Apesar de partirem de um ponto de vista pessoal, engolem-me e fazem-me perante questões essenciais da humanidade. Sob o meu olhar, tornam-se assim transcendentes. 
O argumento não é tudo. A trilogia "Before Sunrise/Sunset/Midnight" não seria titular da qualidade que apresenta se a química entre os protagonistas fosse inexistente. O argumento de determinado filme pode ser a ferramenta essencial mas perder-se-ia se não estabelecesse um diálogo com a montagem. A sua essência pode esfumar-se se o elenco não for competente e convincente na sua abordagem. 

CL: Artisticamente falando, agarras-te mais aos argumentos e aos seus simbolismos ou a toda a estética e modo de filmar?

RS: Aquando da leitura desta pergunta é-me inevitável não trazer à memória o recente caso que se dá pelo nome de "Gravity". Ainda que não seja tão superficial quanto aparenta à partida, não é pelo argumento que será lembrado posteriormente. A estrondosa experiência advém da realização de Cuarón. Os planos-sequência absolutamente brilhantes que nos remetem para um tempo e espaço real. Os movimentos de câmara que cobrem a acção necessária e que enlouquecem os sentidos do espectador. A mestria da direcção de fotografia que nos faz esquecer o facto da filmagem ter lugar num estúdio. Este é apenas um pequeno grande exemplo do prevalecer da estética em detrimento do argumento. Num cenário ideal, um filme cativa-me por saber conjugar as duas proposições presentes na pergunta. Tendo enaltecido anteriormente um filme decorrido no espaço, imediatamente a minha memória traz à tona "Solyaris" e "2001: A Space Odyssey". Estes dois filmes conseguem fazer essa conjugação de forma perfeita. 
A estética e o modo de filmar são alguns dos principais factores que me fazem idolatrar o cinema de autor. Por outro lado, o argumento e os seus respectivos simbolismos fazem-me querer rever determinado filme inúmeras vezes. Tal como referi na questão anterior, a cada nova visualização é revelada uma nova camada de significado. 
Todos estes elementos acabam por não ser independentes. Um argumento pode recorrer à estética para transmitir certos simbolismos. E obviamente, as opções tomadas pela "câmara" seguem a linha de argumento.

CL: Identificas-te mais com o academismo ou com o experimentalismo? Em que sentido as duas vertentes apoiam e completam o cinema?

RS: Com o experimentalismo. Mas atribuo igual valor a ambas as vertentes. O experimental é a via livre de pensamento, organizada na sua desorganização. Surgem novas ideias, novos movimentos artísticos, novas linhas de pensamento. Mas o que seria desse veículo alternativo sem o academismo como catapulta? Afinal de contas, para quebrar os moldes temos de conhecer os seus contornos. É preciso conhecer o filme para elaborar o anti-filme.

CL: Actualmente a sociedade e a cultura é muito dependente da sétima arte? E vice-versa?

RS: O cinema bebe as questões da humanidade. Recorre a acontecimentos mundiais para os difundir no grande ecrã. 
Uma ida ao cinema torna-se um ritual, um traço cultural. A sociedade necessita de uma fuga. Uma fuga à realidade. Encontra-a na sétima arte. Gradualmente, o ser humano começa a exibir dificuldades em distinguir a realidade da ficção.
"Parecia mesmo um filme": frase-padrão que tantas vezes preenche a voz do ser humano, quando este se encontra perante um acontecimento improvável. O mundo diegético apresentado no ecrã torna-se o modelo de primeira ordem. Onde reside o real? 

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Lars Von Trier: "Um filme deve ser como uma pedra no sapato."

RS: A citação destacada espelha na perfeição a essência do seu próprio cinema. A sua filmografia não ousa carecer do choque, essa que parece ser a sua palavra de partida. Lars von Trier pretende incomodar o espectador, fazê-lo reflectir sobre o monstro que há em si. Quer que os seus filmes se tornem uma experiência indigesta para o corpo e mente. Tornam-se assim elementos integrantes da vivência do indivíduo.

2 comentários:

  1. Mais uma vez, obrigado pelo convite. É sempre um prazer quando nos dão a oportunidade de poder divagar sobre o assunto que nos é mais querido. Tem sido com regozijo que acompanho o crescimento desta rubrica. É sempre interessante poder conhecer os vários autores através das suas respostas. Iniciativas como estas fazem falta. Que não funcionem como mera publicidade mas que unam ideias, pensamentos, pontos de vista. E têm precisamente isso :)

    Abraço,
    Rafael Santos
    Memento mori

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  2. RAFAEL SANTOS, Exactamente, é esse mesmo o propósito desta rubrica, em jeito de entrevista e de iniciativa - o de tentar unir ideias e pensamentos segundo uma paixão comum a todos, para além de estimular a reflexão de cada um, individualmente. É um prazer enorme fazer parte deste grupo. Muito obrigado, mais uma vez, pela colaboração e pelas palavras que, regularmente, dedicas aqui no blogue.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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