Nascido para Matar, Stanley Kubrick
Tudo na guerra é ridículo, é estapafúrdio, desde a fase de recrutamento em que se transformam homens singulares e conscientes em máquinas vulgares e básicas, até à fase da acção, do confronto bélico entre nações e entre seres ética e moralmente iguais. Kubrick condena isso, e com este filme tenta-o demonstar, talvez como nunca - a estupidez de todo este processo de matar e destruir a natureza e a própria humanidade.
O filme divide-se em duas partes, sendo a primeira a tal do recrutamento, em que os soldados são preparados e treinados para encarar o que se seguirá como inevitável e essencial. O homem desfigurado num monstro, num ser sem consciência e sem identidade. Na prática, é induzido a agir como se de uma criança se tratasse - nasceste para matar e para evitares seres morto, mas terás de ter fé para sobreviveres (passe o ironismo e a contradição), unicamente para continuares, outra vez, a matar. Portanto, a cruz, levada ao peito, é o veículo para não perder a esperança de forma a alcançar a tão desejada paz, tal como o capacete, no qual está escrito "born to kill", é o chamariz e a motivação para matar sem dó nem piedade. Mais incongruente que isto não sei o que será, de tão grave e ingénuo que é. Daí a infantilidade imposta e apre(e)ndida ferverosamente na fase de recruta, às custas de muito treino e disciplina (des-educação).
Numa segunda parte, seguimos os soldados já inseridos na acção, imersos nas tácticas e técnicas da guerra. Todo o vocabulário e o comportamento é, pois, ponto assente, está assimilado. O inimigo é o objectivo e o alvo a atingir, assim como o companheiro do lado é sagrado, é a única réstia de amizade, de valores e de humanidade que existe dentro de tais monstros. Pode-se brincar, desanuviar e até cantar, mas o cenário é de destruição, de fogo, e por isso nunca esquecível.
Este mundo é, senão, terrivelmente simples, quais crianças - ou se está a matar, ou se está a conviver com os camaradas, ás vezes as duas coisas em simultâneo, mas sempre em convivência uma com a outra, como se ambas se pudessem sequer conjugar. Não há aqui, apesar de tudo, grandes responsabilidades, porque essas vêm de cima, das autoridades que controlam e manipulam estes verdadeiros peões no campo de batalha.
Este mundo é, senão, terrivelmente simples, quais crianças - ou se está a matar, ou se está a conviver com os camaradas, ás vezes as duas coisas em simultâneo, mas sempre em convivência uma com a outra, como se ambas se pudessem sequer conjugar. Não há aqui, apesar de tudo, grandes responsabilidades, porque essas vêm de cima, das autoridades que controlam e manipulam estes verdadeiros peões no campo de batalha.
O drama é, deste modo, procurado e eficazmente transmitido, mas de forma algo satírica. Kubrick é exímio nesse retrato hilariante e nessa capacidade espirituosa de fugir a qualquer tipo de estrutura tipificada e clicherizada do sub-género (à data tão recorrente). Nesse sentido, a abordagem é invulgar, sendo a câmera interventiva e incisiva ocasionalmente, como se ela própria procurasse os segredos e as vergonhas por revelar, aqueles cadáveres que ninguém se quer lembrar, mas que estão lá, que aconteceram (o final da primeira parte alude a isso mesmo). Ainda no encalço da câmera se obtém alguns enquadramentos destacáveis, na evidência do seu propósito, dando a sensação que o realizador quer, de vez em quando e em pontos-chave, gravar-nos determinada ideia ou ilação sob um contexto perfeitamente delineado e assimilado.
Há cenas, igualmente, de absorver de tão marcantes que são (como aquela em que vemos os próprios soldados a filmar e a distribuir papéis uns aos outros em pleno tiroteio e ao som da faixa "Surfin' Bird"). Estas, invariavelmente, estão muito bem acompanhadas, seja ao som da excelente banda-sonora seleccionada, seja ao som de todo o ambiente recolhido e trabalhado, na alternância rítmica e ponderada entre ruídos e silêncios. Daí que a acção e o seu protagonista (que vai variando), assumem o controle total cena após cena, que por meio da realização, sobretudo dos travellings (estilo videojogo), nos vão induzindo para dentro das tácticas e das emoções, ao ponto de nos apercebermos da irrelevância e do absurdo de tudo isto, de toda a guerra em si. E é desta forma que Stanley Kubrick fornece a sua visão, exemplificada, neste caso, no Vietname, mas acima de tudo, na nossa consciência.
Há cenas, igualmente, de absorver de tão marcantes que são (como aquela em que vemos os próprios soldados a filmar e a distribuir papéis uns aos outros em pleno tiroteio e ao som da faixa "Surfin' Bird"). Estas, invariavelmente, estão muito bem acompanhadas, seja ao som da excelente banda-sonora seleccionada, seja ao som de todo o ambiente recolhido e trabalhado, na alternância rítmica e ponderada entre ruídos e silêncios. Daí que a acção e o seu protagonista (que vai variando), assumem o controle total cena após cena, que por meio da realização, sobretudo dos travellings (estilo videojogo), nos vão induzindo para dentro das tácticas e das emoções, ao ponto de nos apercebermos da irrelevância e do absurdo de tudo isto, de toda a guerra em si. E é desta forma que Stanley Kubrick fornece a sua visão, exemplificada, neste caso, no Vietname, mas acima de tudo, na nossa consciência.
"I wanted to see exotic Vietnam... the crown jewel of Southeast Asia. I wanted to meet interesting and stimulating people of an ancient culture... and kill them."
Private Joker
★★★★★★★★★★
Jorge Teixeira
Jorge Teixeira
classificação: 9/10
links: IMDb, FilmAffinity, ICheckMovies, MUBI
Como tornar um homem numa máquina de guerra em duas partes.
ResponderEliminarGrande filme!
Cumps cinéfilos.
SAM, Bela frase de cartaz, que espelha sinteticamente tudo o que o filme nos dá para reflectir. Sem dúvida, um grande filme. Volta sempre!
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Jorge, esta foi a tua primeira crítica que li e fiquei verdadeiramente satisfeita. Não são muitos os críticos que realmente tecem raciocínios sobre o filme nos seus textos. Grande parte, de facto, limita-se a elogiar ou criticar os principais aspectos de cada filme. Mas tu não, para além disto contribuis para que o teu leitor volte a pensar no filme e talvez a reinterpretá-lo.
ResponderEliminarQuando li esta crítica comecei por copiar algumas das tuas frases para depois lhes dar destaque no meu comentário, por as ter achado absolutamente brilhantes e significativas, mas quando cheguei ao fim já eram muitas frases, eram a crítica quase na sua totalidade!
Por isto tudo, muitos parabéns e continua por favor. Vais ter aqui uma leitora assídua.
Desculpa não fazer nenhum comentário sobre o filme em si mas tu de facto já disseste muito. Limito-me a dizer: "apoiado!" :)
FILIPA LEITE ROSA, Muito Obrigado. Sabe sempre bem ouvir elogios, ainda para mais vindos de uma amante de cinema, de escrita e de arte em geral. Quanto à questão da crítica, já o disse, prefiro normalmente que se fale do filme tentando imprimir conhecimento adicional ou reflexões sobre o mesmo, do que baseado unicamente em adjectivos opinativos. Haverá contudo excepções, como é óbvio. Tal como tento ainda reflectir e transpor para os meus textos um pouco de tudo sobre o filme, nunca me restringindo apenas e só ao argumento (mais fácil e mais identificativo).
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Tenho a ideia, não sei se errada, que o PLATOON do Oliver Stone partilha maior fama do que este NASCIDOS PARA MATAR de Kubrick. Sinceramente, considero este bem superior (influenciou claramente um dos mais substimados mas mais brilhantes filmes de guerra da passada década, o MÁQUINA ZERO de Sam Mendes). Grande filme, grande crítica, parabéns.
ResponderEliminarRoberto Simões
CINEROAD
cineroad.blogspot.com
ROBERTO SIMÕES, Muito obrigado. É claramente um filme que gosto muito. Um dos primeiros Kubrick's que me conquistou. Já o Platoon, não estando também para mim ao nível deste, desta reflexão à guerra, é um filme ainda assim muito bom, capaz de se distinguir por si só facilmente dentro do seu género.
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo