4.10.13

Percursos (2)

Entre James Stewart e Anthony Mann


Há um momento em que acordamos, em que nos apercebemos dessa mudança (essa alternativa), silenciosa, poderosa, que nos diz e nos confirma que com insistência, paciência e teimosia a fasquia é ultrapassada e uma nova meta se projecta à nossa frente, surgindo depois todo um novo mundo a ser explorado, aí sim com prazer redobrado o suficiente para galgarmos mais uns degraus desta arte classificada de sétima. Falo, pois, do gosto pelo cinema clássico, pelo cinema antigo, pelo cinema adverso à velocidade e à fragilidade de hoje em dia. De Hollywood à Europa, como é óbvio, sem restringimentos ou limitações, e ainda que o primeiro se estenda inevitavelmente mais. Por isso, e apenas pelo acaso, foquemo-nos agora na época de ouro americana, onde o mudo já lá ia, mas subsistia nos alicerces e na construção, e onde havia uma série de mecânicas ou relações evidentes, de actores com realizadores, de realizadores com compositores, de compositores com argumentistas, etc. A nostalgia e o objectivo aqui serão naquele que é, provavelmente, o mais romântico e inspirador género americano - o Western, em particular, na parceria entre James StewartAnthony Mann, porventura a mais célebre e a mais singular de todas as que o primeiro fez parte (que me desculpem Capra, Hitchcock e Ford).

Lembro-me, como se fosse hoje, a primeira vez que vi o astro de James Stewart no ecrã, dirigido então por Hitchcock nesse incontornável exercício cinematográfico que é Rear Window, onde o mesmo domina todo o espaço e todo o imaginário conceptual do próprio filme. Mais que uma memória que prevalece, o actor torna-se de imediato numa aposta fiável, segura e consistente. Posteriormente, e passando por mais alguns filmes do mestre do suspense (entre eles Rope e a sua obra-prima Vertigo) ou pela famosa e duradoura colaboração que teve com Frank Capra (de que It's a Wonderful Life é um dos faróis máximos), James Stewart confirma o expectável e demonstra porque foi considerado, à época, um dos melhores da sua geração, facto que lhe é meritório e ao mesmo tempo lhe é caro e inevitável tendo em conta os projectos comerciais que sempre abraçou, e logo a projecção que isso acarretou. Nada que o diminua, até porque curiosamente, ou nem por isso, uma das melhores interpretações que alcançou não foi nesta fase inicial ou mais adulta, mas sim já no começo da velhice, na sua prestação em The Man Who Shot Liberty Valance de John Ford, onde a idade e o registo da personagem contribuíram provavelmente para uma suavidade e profundidade que lhe eram exigidas, e que o mesmo fez questão de superar.

No seguimento (não cronológico, nunca é), era certo e sabido que o par Anthony Mann-James Stewart faria as delícias das próximas visualizações, colmatados que estavam agora os seus filmes mais famosos. Começou-se por Winchester '73, o primeiro e um dos mais carismáticos e conhecidos da dupla, e se aqui Stewart continua com o seu absorvente registo profundo e eficaz (de resto como nos tinha habituado), Anthony Mann (cineasta esquecido e algo desprezado no seu tempo) surpreendo-nos, delicia-nos com uma história em tudo simbólica de dois cowboys, uma espingarda e a respectiva caça ao homem (ou à arma), que nos atrai desde logo a atenção e se revela por isso como uma referência a não esquecer. Com efeito, o realizador filma com uma cadência e segurança invejáveis, com campos e contra-campos graciosos, ansiosos e duvidosos (como é sempre de esperar), e uma composição sonora e musical rítmicas e mais que apropriadas.

Trata-se, na realidade, de um filme de outro tempo, do seu tempo, do tempo dos Westerns ou do refinado cinema americano, aquele que se importava, acima de qualquer outro factor, com os personagens, com a sua edificação e a relação para com o espectador. Para muitos, um dos melhores Westerns de sempre, entre numerosos que o cineasta realizou, e para além da sua versatilidade que o dignificou com filmes sem o seu parceiro habitual e especial, tais como The Tin Star, Man of the West ou The Fall of the Roman Empire. Não será, portanto, de admirar que o potencial de James Stewart atinja aqui proporções elevadas, não tanto na intensidade, mas sim na intimidade e na regularidade que nos transmite, no caso, mas a partir deste primeiro tomo, de projecto em projecto, de filme em filme, ou simplesmente, de Mann a Mann, no que perfez mais sete colaborações (entre os quais quatro Westerns). E é assim que chegamos aos famosos cinco filmes da parceria, de Winchester '73 viajamos até Bend of the River, outro grande filme de Mann, e deste para The Naked Spur, talvez o mais belo e o mais consensual filme para a crítica e para o público, para finalizarmos com The Far CountryThe Man from Laramie, duas excelentes incursões por este mundo de vingança, de orgulho e, paradoxalmente, de amor e camaradagem.

Anthony Mann em todos estes filmes sempre deu a James Stewart uma complexidade psicológica e uma diversidade ontológica interessantes e, em parte, diferentes de qualquer outro realizador. É sabido que Mann tinha um carácter vincado e por vezes teimoso, particularidade que até originou o fim da parceria entre ambos, mas essas características provavelmente só lhe aumentaram a competência, o rigor e a entrega para com o trabalho dos outros, nomeadamente com os actores e especificamente com Stewart. Em cinco anos, de 1950 a 1955, os dois contribuíram com cinco filmes que renovaram e personalizaram para sempre o género, ao jeito de um sustentado fim do classicismo, e que anteciparam, num Western (mais) moderno, as obras-primas de Ford e de Hawks (The Searchers e Rio Bravo respectivamente), sendo que, à semelhança de uma boa novela ou das actuais sequelas, todos os filmes se articulam e como que se relacionam entre si, na simbiose e identificação que existe entre o trio espectador, actor e realizador. Há, de facto, uma gradual progressão intelectual e uma riqueza construtiva implícita na alternância entre o eu-observador e o tu-orador (que narra e que se expõe) e na dinâmica autor-personagem e, por isso, sobretudo uma ligação resistente entre os dois homens que ecoa e reforçadamente pressentimos no (grande) ecrã. Totalmente inseparáveis, e por conseguinte, uma autêntica e premeditada melancolia quando se termina o último "episódio" desta saga, por assim dizer, com a certeza, porém, de queremos (e devermos) voltar sistemática e regularmente aos mesmos, e, desse modo, descobrirmos sempre algo de novo (o que é normal, mas não menos genial).

A mudança, inicialmente referida, fortalece-se então neste ponto ou neste estágio de conhecimento, onde a aparente repetição autoral e a vinculação a um registo interpretativo são máximas e altamente emocionais e recompensatórias. Uma fase que não se esquecerá e que definirá para sempre uma etapa de uma determinada cinefilia que adquire com esta parceria uma solidez e uma tranquilidade imprescindíveis. Na prática, a referência, a imortalização ou a lenda surge, até aos nossos dias, com estes cinco sequenciais grandes filmes do Western ou do Faroeste, considerado por muitos o cinema americano por excelência.

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