Sacanas Sem Lei, Quentin Tarantino
Este capítulo da carreira de Tarantino revela-se como o seu mais requintado projecto. Isto porque se trata de uma confluência abismal (e surreal) de géneros, reinterpretados e reinventados com surpreendente equilíbrio e mestria. Não é ao acaso, por isso, que se privilegiam sobretudo, e como tem de ser, o argumento e a realização, não descurando ainda assim aspectos técnicos, igualmente muito bons.
Ora, por um lado, é nos diálogos, no texto e nas palavras que o cineasta se debruça, se baseia para construir a sua história (a sua visão) e as suas personagens. De facto, este filme é ele próprio um romance, seja pela sua divisão em capítulos, seja na sua dependência (e valência) pelos diálogos, tão preponderantes numa leitura. Por outro lado, é também e em simultâneo, nas imagens que o realizador sustém o filme. É no poder dos planos que a construção, a tensão e os vários níveis do argumento se apoiam. Se num prisma, aquilo que se diz é sintomático dos acontecimentos, do desenvolvimento narrativo, noutro, aquilo que se mostra e como se mostra, denuncia as sensações e as emoções contidas. Tarantino, apesar disso, ainda consegue, com igual eficácia, baralhar e distribuir isto tudo. Tanto está a desenvolver a acção por meio de falas e de respirações, como a seguir conclui o episódio recorrendo a toda uma linguagem imagética, perceptível nos contrastes, nas saturações, nos cortes, nos ângulos e nas profundidades de campo.
Daí que também seja muito uma questão de montagem, de jogo, de arte, de saber quando e como fundir (ou alternar) essa dualidade. Digo alternar, porque por vezes as pausas e a cadência num diálogo ofuscam a visão, ou melhor, retiram protagonismo aos planos e àquilo que estamos a ver. Ouve-se e interpreta-se mais, ao ponto de quase nos cegar, digamos. Todo o diálogo inicial (excelente Christoph Waltz) é exemplo disso mesmo, onde estamos, sobretudo, atentos às falas e aos detalhes.
Daí que também seja muito uma questão de montagem, de jogo, de arte, de saber quando e como fundir (ou alternar) essa dualidade. Digo alternar, porque por vezes as pausas e a cadência num diálogo ofuscam a visão, ou melhor, retiram protagonismo aos planos e àquilo que estamos a ver. Ouve-se e interpreta-se mais, ao ponto de quase nos cegar, digamos. Todo o diálogo inicial (excelente Christoph Waltz) é exemplo disso mesmo, onde estamos, sobretudo, atentos às falas e aos detalhes.
É, acima de tudo, este poder de nos concentrar, seja pela excelência do argumento, seja pela genialidade da câmera, que Quentin Tarantino se revela portentoso. Aqui talvez mais do que nunca, na medida em que transpira cinema e referências por todos os poros. A influência de Sergio Leone é, pois, clara (sempre e mais uma vez), tal como do género associado - o Western Spaghetti. Aliás o filme, no seu começo, confunde-se com a abertura de muitos filmes do Oeste no seu período áureo. A casa isolada, as paisagens distantes, o silêncio, os olhares, as expressões, etc. Já em Reservoir Dogs isso era notório, com a respectiva cena inicial à volta da mesa. Assim como em Kill Bill, 1 e 2, se denota essa marcante influência, inclusive na banda-sonora. Daí a impressão que Tarantino se vem aprimorando, vem limando as arestas da sua irreverência e ousadia (não necessariamente que os seus trabalhos anteriores sejam inferiores). Espelhada e acabada aqui, neste sublime argumento, que trai a história e a própria realidade, por assim dizer.
De referir ainda a banda-sonora, que está igualmente ao nível dos acontecimentos. E se, muitas vezes, serve apenas como adorno ou complemento, aqui ela assume linguagens próprias, catapultando o resultado final para um patamar ainda mais elevado. É por tudo isto e muito mais, que Inglourious Basterds é um dos melhores filmes do seu ano, e um dos melhores da década, sem sombra de dúvidas. Grandioso.
★★★★★★★★★★
Jorge Teixeira
Jorge Teixeira
classificação: 10/10
links: IMDb, FilmAffinity, ICheckMovies, MUBI
Concordo que este seja um grande filme, mas não o considero de todo o melhor Tarantino, realizador que é um verdadeiro mestre em recriar géneros ditos (ou considerados) menores. A cena inicial do Basterds, por exemplo, se ninguém soubesse de quem era o filme, diria de caras que era um puro western spaghetti.
ResponderEliminarApesar de gostar do trabalho dele, acho que Tarantino desde Pulp Fiction acabou por se perder um pouco na exploração destes géneros. No fundo os últimos filmes dele são perfeitos, alguns até demasiado perfeitos para o que se pretende, como é o caso de Death Proof, mas ao mesmo tempo acabam por não trazer nada de novo e acabam por se tornar um pouco repetitivos, ou seja, já começamos quase a estar à espera de qual será o próximo género que será explorado por Tarantino do que qual será o próximo filme dele. É pena para um cineasta que tinha dado boas provas no início de carreira.
Mas ao menos ainda vai fazendo bons filmes que nos vão divertindo. Valha-nos isso.
Cumprimentos
Concordo um pouco com o PMF e gostava de ir mais longe, acho que os filmes do Tarantino se tornaram cartoons e parecem agora mais ocos do que audazes. Há uma ou duas grandes cenas, que acabam por ser apenas set-up para climaxes de violência e a vaidade do Tarantino atingiu um nível tal que se acha no direito de escrever uma estória que muda a História. Acho que a ideia de um pelotão de soldados judeus na Alemanha nazi é um grande conceito, mas foi transformado num Indiana Jones com gore, o que acaba por saber a pouco e, com todas aquelas introduções e flashbacks e efeitos, mais parece um episódio do Samurai Jack do que um filme de guerra. Bom mas insatisfatório.
ResponderEliminarO Inglourious Basterds, é composto por muitos capítulos... e o primeiro capítulo, o meu preferido, é a excelência do Quentin Tarantino.
ResponderEliminarO filme depois entra na normalidade (e é bastante divertido), naquilo que é o "habitual cinema-pastiche" do Tarantino... mas gosto muito do filme também.
Penso que o impacto deixado pelo Pulp Fiction, é insuperável e o realizador, apesar de ter mudado de registo (Jackie Brown, Death Proof, Kill Bill) almejava com este filme fazer esquecer tudo o que fez antes mas isso não é possível. Mesmo sendo "Inglourious Basterds" um belissimo filme, não o coloco como uma obra prima. "Pulp Fiction" sim. De caras!
Touché. Grande filme de Tarantino, para mim apenas suplantado pelo diptíco Kill Bill!
ResponderEliminarPMF, Tarantino é, de facto, um mestre nessa recriação e revitalização de géneros ditos menores, mas não só, na minha opinião. Vejo ali muito talento na arte de filmar, na arte de contar e estilizar uma história, que não se perde de um filme para o outro. Nos dias que correm, fá-lo como ninguém, sempre imprimindo o seu cunho pessoal. E por isso, não me parece que tenha perdido o vigor de outros tempos, igualmente geniais por sinal. Parece-me até que, cada vez mais, se tem excedido a si próprio na excentricidade e variedade que apresenta, e não de uma forma perfeita como dizes, mas sim de um modo mais amadurecido, mais rico (e aqui não falando propriamente se são melhores ou piores). Pode-se dizer que não inova tanto num género como já o fez, porventura, mas isso é preciso? Para mim não, e tomara que faça muitos filmes destes, tão geniais e poderosos que é um autêntico regalo para os olhos e para os ouvidos.
ResponderEliminarO NARRADOR SUBJECTIVO, Não concordo, mas acho que te percebo. Tarantino nos seus primeiros filmes foi desde logo audaz no argumento, nos diálogos e na câmera, de um modo geral. Foi, por isso, tremendamente eficaz no que pretendia, mas sobretudo genial e excêntrico em demasia para saltar à vista. Desde então, e na minha opinião, tem primado, para além de continuar com as suas marcas, em melhorar-se esteticamente, e tecnicamente por arrasto. Existe nos últimos filmes dele (Kill Bill's e este) um sentido maior de coerência, de obra acabada e limada até ao brilho, que não existia tanto no início da sua carreira. Daí que não sinta, de todo, essa falta de conteúdo que referes, porventura, isso sim, os seus filmes têm tido cada vez mais a aparência trabalhada, o que por si só pode ofuscar, à primeira vista, o interior, que continua soberbo a todos os níveis, na minha opinião.
ARMPAULOFER, O primeiro capítulo é qualquer coisa de génio. Cenas destas são raras em cinema. Esta em particular, será para rever inúmeras vezes, e ainda assim reparar em novos detalhes deliciosos. Não sei se o legado de Pulp Fiction é insuperável, se a expectativa, desde então, tem é sido demasiado alta, talvez até mais alta que o próprio Pulp Fiction. Fica a pergunta no ar, sendo que gosto muito de ambos os filmes.
MIGUEL REIS, Sem dúvida. Os Kill Bill são igualmente muito bons, terrivelmente geniais, daí dividirem também a preferência por filmes do realizador. Volta sempre!
Obrigado pelos comentários.
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Óptimo, óptimo, óptimo. Aquele primeiro acto é um tremendo exemplo de escrita fantástica! Muito bom
ResponderEliminarNão o consideraria o melhor Tarantino, mas é um filme extraordinário - só a cena inicial merecia um Óscar (e Waltz ganhou-o com justiça).
ResponderEliminarUm pequeno comentário a um comentário:
"a vaidade do Tarantino atingiu um nível tal que se acha no direito de escrever uma estória que muda a História" (O Narrador Subjectivo)
Isto é História alternativa (ou ficção alternativa), e está longe de ser vaidade. Na literatura abundam os exemplos: de "The Man in the High Castle", de Philip K. Dick (provavelmente o melhor exemplo), até aos recentes "Pride and Prejudice and Zombies" de Seth Grahame-Smith e "Android Karenina", de Ben H. Winters, entre muitos outros (sendo que os dois últimos não mudam a História, mas fazem uma derivação de histórias bem conhecidas). É um plot device como outro qualquer, e bem executado pode dar resultados muito interessantes. "Inglourious Basterds" é disso um exemplo.
NUN0B., Óptimo, brilhante, excelente ou magnífico são tudo adjectivos que lhe assentam que nem uma luva.
ResponderEliminarJOÃO CAMPOS, Estou totalmente de acordo contigo, seja em relação ao filme e ao seu capítulo inicial, seja na temática das Histórias alternativas, que tal como disseste pode dar resultados interessantes, quando bem executada, isto para além do facto de expandir todo um imaginário e liberdade criativa.
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Também gosto imenso dos KILL BILL ou do PULP FICTION, mas este para mim é superior, o grande filme de Tarantino, que brilha no argumento sobre todas as coisas. Não me canso de rever o filme... o final então é genial. A "obra-prima", como a personagem de Brad Pitt afirma às tantas, simbolicamente.
ResponderEliminarRoberto Simões
CINEROAD
cineroad.blogspot.com
ROBERTO SIMÕES, Também o coloco no topo das minhas preferências no que concerne ao realizador, acima de Kill Bill's e de Pulp Fiction, muito embora os considere todos, sem excepção, grandes filmes.
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo